quarta-feira, 7 de abril de 2010

CIDADE E MODERNIDADE: O RÁDIO PARAENSE DOS ANOS 30 EM QUESTÃO

Érito Vânio Bastos de Oliveira (Historiador)

A radiofonia tupiniquim ensaiou seus sons, vozes e chiados na década em que os modernos e tenentes, a sua maneira, ensaiavam rupturas e a sua afirmação nacional. Dessas fumaças de mudanças começaram a ser escutados os sons da modernidade, do progresso, da civilidade como educação e cultura, que por sua vez, se atrelavam às imagens de centros urbanos considerados modernos, remodelados e centros da locomotiva econômica do país. Desse modo, e não de outra forma, as primeiras estações de rádio do Brasil estavam na capital federal e na capital do café. Porém, duas cidades que também tiveram seus processos remodelação urbana que, porém, representavam economias que tinham perdido, por múltiplas circunstâncias, o seu dinamismo, estavam nas regiões nordeste e norte: Recife e Belém do Pará. Nessas duas cidades, respectivamente, nasceram duas sociedades radio- difusoras, o Rádio Clube de Pernambuco e o Rádio Clube do Pará.
Na Amazônia, a radiodifusão iniciou efetivamente as suas transmissões na ante-sala das disputas pelo poder entre as oligarquias e a Aliança Liberal, da crise mundial do capitalismo de 1929 e dos movimentos “revolucionários” que trariam Getúlio Vargas ao poder. Na realidade dos espaços administrativos regionais tomam destaque os tenentes e toda uma proposta moralizadora do serviço público e administrativo. No Estado do Pará, a figura de proeminência dessa nova realidade foi o tenente Magalhães Barata.
A emissora radiofônica da Amazônia, o Rádio Clube do Pará, iniciou as suas transmissões no dia 7 de setembro de1929, segundo foi noticiado pela coluna “radiotelephonia” do jornal A Folha do Norte. A emissora passou por várias transformações ou “melhoramentos”, mas, de um modo geral, ela era composta por um estúdio, a antena e a sua sede. Nesta sede, um espaço de destaque era o seu auditório.
Como a sua própria nomenclatura informava, tratava-se de um clube de associados que pagavam mensalidades e tinham acesso privativo à sede da emissora. Apenas em momentos excepcionais era franqueado a um público generalizado. Se apresentar como músico, cantor, humorista ou poeta servia para referendar status social e cultural além de reafirmar círculos de intelectuais. Outrossim, a freqüentação de um espaço como a sede da emissora PRAF, depois PRC-5, indicava que um dos seus aspectos para a percepção e sensibilidade dos freqüentadores era o de ser tanto um local que evocava modernidade como também o de prazer.
Por sua vez, se é verdade que, de um lado, os aspectos de lazer e divertimento estiveram associados ao funcionamento e aos espaços da emissora, sobretudo no que se referia ao seu auditório, por outro, o modelo principal perseguido pelos homens do rádio desse tempo no Pará foi, sem dúvida, o educacional, o ilustrado. Poetas, músicos, maestros, médicos, políticos, acadêmicos, professores ou especialistas em áreas do conhecimento proferiam palestras, conferências, rádio sketch, páginas literárias, comentários de livros e autores, aulas e consultas pelo rádio, programas celebrativos da memória de um importante artista patrício.
Se utilizando de alto-falantes em importantes espaços da cidade de Belém como as praças públicas, a emissora objetivava materializar e assumir o papel social e cultural que seria o de servir como meio de expansão da arte nacional, ensinando-a inclusive para as ”classes menos favorecidas”. Desse modo, os programas educativos e artísticos serviam ao propósito, digamos, em última instância, de “civilizar” os setores populares e promover a “moralização das classes laboriosas” (CHOAY, 1999: 104) no contexto novo de aproximação com esses grupos sociais a partir da política baratista.
Magalhães Barata e a intendência municipal nos primeiros anos da década de 30 procuraram efetivar uma nova urbanidade que se caracterizava tanto pela “moralização” dos espaços públicos através das “medidas de impacto” como pela aproximação com os setores populares e operários. A emissora vivenciou o cotidiano dessas transformações políticas, sociais, urbanas e estéticas, seja valorizando os espaços públicos através das irradiações de sua programação, simbolizando tanto progresso e modernidade técnica como cultural. Assim, por exemplo, No dia 19 de julho de 1931, a coluna “Radiotelephonia” do jornal A Folha do Norte estampava uma notícia com o título “inauguração de possante alto-falante” no qual os colunistas pintavam com as cores de um acontecimento a inauguração de um ”public speaker” na fachada lateral do Teatro da Paz (alto-falante possante) irradiando os programas da emissora na praça da República até áreas mais distantes. Os comerciantes de Belém foram incentivados a participar da propaganda pelo rádio devido a um “publico numerosissímo” que passou a ter acesso por conta do alto-falante. A participação da elite política e econômica com Barata e seus secretários, além de fazendeiros e a própria imprensa foi marcante e reveladora da integração, usos e representações da emissora por diversos grupos políticos e sociais, ao mesmo tempo em que, valorizava e ressignificava espaços públicos.
Outra importante preocupação tanto do governo de Barata como de alguns intelectuais paraenses como da própria emissora paraense foi chegar até a população do interior paraense, nas localidades e vilarejos. Com esse propósito, a emissora inaugurou em 1934 uma estação de ondas curtas passando a irradiar a sua programação para o interiorano. Nessa época, um dos fundadores do rádio paraense, Edgar Proença, batizou o prefixo famoso “A voz que fala e canta para a planície”.
Antes que a voz para a planície chegasse, inúmeros vilarejos e localidades mais distantes contavam como um dos meios de comunicação os diversos postos de linha telegráfica que passaram a ligar esses diversos espaços. O sociólogo Claude Lévi Strauss esteve na Amazônia fazendo uma pesquisa etnográfica, onde reconheceu de imediato, a necessidade de comunicação na região quando “De Urupá até o rio Madeira os postos de linha telegráfica são ligados a vilarejos de seringueiros que dão uma razão de ser ao povoamento esporádico das margens”. (LÉVI-STRAUSS, 1996 [1955]: 341)
Outro aspecto observado por Lévi Strauss nesses vilarejos e localidades da Amazônia que chamava a atenção era a precariedade de acesso às informações do que ocorria no mundo. A respeito disso, ele afirmou da importância dos “regatões” ou “mascates” que traziam além de remédios “velhas gazetas igualmente estragados pela umidade”. Nessa ocasião, o próprio estudioso francês experimentou a defasagem informativa ao afirmar que “um exemplar largado na cabana de um seringueiro informou-me, com quatro meses de atraso, dos acordos de Munique e da mobilização.” (LÉVI-STRAUSS: 342)
Cônscios dessas experiências e dificuldades, os homens da política como também, da radiodifusão no Pará passaram a instrumentalizar o rádio como meio de comunicação, informação e educativo. De tal modo, que além de levar as notícias se objetivava educar os ouvintes com aulas, por exemplo, sobre linguagem e o escrever e falar “correto”. Lévi Strauss afirmava que ao observar o modo de conversa das populações à dentro região amazônica, notava “deformações caboclas” com a “inversão dos fonemas: ‘percisa’ por precisa, ‘prefeitamente’ por perfeitamente...”. (LÉVI-STRAUSS: 342) Para os grupos intelectuais e políticos que tomavam corpo na emissora, o “broadcasting” serviria também para “civilizar” a linguagem, instruindo a melhor maneira de falar e se comunicar. Um dos colaboradores semanais da emissora paraense, Edgar Serra Freire, especialista em estudo da linguagem, proferiu um palestra pelo Rádio Clube do Pará no dia 7 de março de 1933, intitulada “a educação do povo pelo amor e uso consciente do idioma materno”.
Filha da sua época ou de épocas, a emissora cuja “voz fala e canta para a planície” experimentou, vivenciou, significou e simbolizou com a cidade de Belém múltiplas relações com os seus espaços e moradores. Sentiu necessidade de expandir seu espaço acústico para a “planície”, para o interior se tornando registro sensível na memória de gerações de populações amazônicas, se confundindo com as pessoas, os espaços, a cultura, os sonhos, o imaginário e a possibilidade do desenvolvimento. Assim, essas ondas sonoras do rádio contam capítulos importantes de múltiplas histórias desse extremo norte do país.

BIBLIOGRAFIA

CHARLOT, Monica e MARX, Roland. Londres, 1851-1901: a era vitoriana ou o triunfo as desigualdades. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, pp. 47-58
CHOAY, Françoise. “A natureza urbanizada: a invenção dos ‘espaços verdes’”. Projeto História, nº 18 (1999), pp. 103-106.
LÉVI-STRAUSS, Claude. “Amazônia” [1955]. In: Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 341-351.
MARX, Roland. “A grandiosidade britânica”. In: CHARLOT, Monica e MARX, Roland. Londres, 1851-1901: a era vitoriana ou o triunfo as desigualdades. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, pp. 21-29
MONDENARD, Anne de. “A emergência de um novo olhar sobre a cidade: as fotografias urbanas de 1870 a 1918”. Projeto História, nº 18 (1999), pp. 107-113.
RONCAYOLO, Marcel. “Transfigurações noturnas da cidade: o império das luzes artificiais”. Projeto História, nº 18 (1999), pp. 97-102.
SCHAFER, Raymond Murray. A afinação do mundo: Uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a
paisagem sonora. São Paulo: Editora UNESP, 2001.