quarta-feira, 26 de maio de 2010

Fim deste blog

Tendo em vista a ineficiencia deste blog para os fins que ele foi proposto, informo que este será desativado e ficarei administrando apenas o meu blog pessoal www.mimcomigomesmo.blogspot.com.
Abraços a todos e a todas!

quarta-feira, 7 de abril de 2010

CIDADE E MODERNIDADE: O RÁDIO PARAENSE DOS ANOS 30 EM QUESTÃO

Érito Vânio Bastos de Oliveira (Historiador)

A radiofonia tupiniquim ensaiou seus sons, vozes e chiados na década em que os modernos e tenentes, a sua maneira, ensaiavam rupturas e a sua afirmação nacional. Dessas fumaças de mudanças começaram a ser escutados os sons da modernidade, do progresso, da civilidade como educação e cultura, que por sua vez, se atrelavam às imagens de centros urbanos considerados modernos, remodelados e centros da locomotiva econômica do país. Desse modo, e não de outra forma, as primeiras estações de rádio do Brasil estavam na capital federal e na capital do café. Porém, duas cidades que também tiveram seus processos remodelação urbana que, porém, representavam economias que tinham perdido, por múltiplas circunstâncias, o seu dinamismo, estavam nas regiões nordeste e norte: Recife e Belém do Pará. Nessas duas cidades, respectivamente, nasceram duas sociedades radio- difusoras, o Rádio Clube de Pernambuco e o Rádio Clube do Pará.
Na Amazônia, a radiodifusão iniciou efetivamente as suas transmissões na ante-sala das disputas pelo poder entre as oligarquias e a Aliança Liberal, da crise mundial do capitalismo de 1929 e dos movimentos “revolucionários” que trariam Getúlio Vargas ao poder. Na realidade dos espaços administrativos regionais tomam destaque os tenentes e toda uma proposta moralizadora do serviço público e administrativo. No Estado do Pará, a figura de proeminência dessa nova realidade foi o tenente Magalhães Barata.
A emissora radiofônica da Amazônia, o Rádio Clube do Pará, iniciou as suas transmissões no dia 7 de setembro de1929, segundo foi noticiado pela coluna “radiotelephonia” do jornal A Folha do Norte. A emissora passou por várias transformações ou “melhoramentos”, mas, de um modo geral, ela era composta por um estúdio, a antena e a sua sede. Nesta sede, um espaço de destaque era o seu auditório.
Como a sua própria nomenclatura informava, tratava-se de um clube de associados que pagavam mensalidades e tinham acesso privativo à sede da emissora. Apenas em momentos excepcionais era franqueado a um público generalizado. Se apresentar como músico, cantor, humorista ou poeta servia para referendar status social e cultural além de reafirmar círculos de intelectuais. Outrossim, a freqüentação de um espaço como a sede da emissora PRAF, depois PRC-5, indicava que um dos seus aspectos para a percepção e sensibilidade dos freqüentadores era o de ser tanto um local que evocava modernidade como também o de prazer.
Por sua vez, se é verdade que, de um lado, os aspectos de lazer e divertimento estiveram associados ao funcionamento e aos espaços da emissora, sobretudo no que se referia ao seu auditório, por outro, o modelo principal perseguido pelos homens do rádio desse tempo no Pará foi, sem dúvida, o educacional, o ilustrado. Poetas, músicos, maestros, médicos, políticos, acadêmicos, professores ou especialistas em áreas do conhecimento proferiam palestras, conferências, rádio sketch, páginas literárias, comentários de livros e autores, aulas e consultas pelo rádio, programas celebrativos da memória de um importante artista patrício.
Se utilizando de alto-falantes em importantes espaços da cidade de Belém como as praças públicas, a emissora objetivava materializar e assumir o papel social e cultural que seria o de servir como meio de expansão da arte nacional, ensinando-a inclusive para as ”classes menos favorecidas”. Desse modo, os programas educativos e artísticos serviam ao propósito, digamos, em última instância, de “civilizar” os setores populares e promover a “moralização das classes laboriosas” (CHOAY, 1999: 104) no contexto novo de aproximação com esses grupos sociais a partir da política baratista.
Magalhães Barata e a intendência municipal nos primeiros anos da década de 30 procuraram efetivar uma nova urbanidade que se caracterizava tanto pela “moralização” dos espaços públicos através das “medidas de impacto” como pela aproximação com os setores populares e operários. A emissora vivenciou o cotidiano dessas transformações políticas, sociais, urbanas e estéticas, seja valorizando os espaços públicos através das irradiações de sua programação, simbolizando tanto progresso e modernidade técnica como cultural. Assim, por exemplo, No dia 19 de julho de 1931, a coluna “Radiotelephonia” do jornal A Folha do Norte estampava uma notícia com o título “inauguração de possante alto-falante” no qual os colunistas pintavam com as cores de um acontecimento a inauguração de um ”public speaker” na fachada lateral do Teatro da Paz (alto-falante possante) irradiando os programas da emissora na praça da República até áreas mais distantes. Os comerciantes de Belém foram incentivados a participar da propaganda pelo rádio devido a um “publico numerosissímo” que passou a ter acesso por conta do alto-falante. A participação da elite política e econômica com Barata e seus secretários, além de fazendeiros e a própria imprensa foi marcante e reveladora da integração, usos e representações da emissora por diversos grupos políticos e sociais, ao mesmo tempo em que, valorizava e ressignificava espaços públicos.
Outra importante preocupação tanto do governo de Barata como de alguns intelectuais paraenses como da própria emissora paraense foi chegar até a população do interior paraense, nas localidades e vilarejos. Com esse propósito, a emissora inaugurou em 1934 uma estação de ondas curtas passando a irradiar a sua programação para o interiorano. Nessa época, um dos fundadores do rádio paraense, Edgar Proença, batizou o prefixo famoso “A voz que fala e canta para a planície”.
Antes que a voz para a planície chegasse, inúmeros vilarejos e localidades mais distantes contavam como um dos meios de comunicação os diversos postos de linha telegráfica que passaram a ligar esses diversos espaços. O sociólogo Claude Lévi Strauss esteve na Amazônia fazendo uma pesquisa etnográfica, onde reconheceu de imediato, a necessidade de comunicação na região quando “De Urupá até o rio Madeira os postos de linha telegráfica são ligados a vilarejos de seringueiros que dão uma razão de ser ao povoamento esporádico das margens”. (LÉVI-STRAUSS, 1996 [1955]: 341)
Outro aspecto observado por Lévi Strauss nesses vilarejos e localidades da Amazônia que chamava a atenção era a precariedade de acesso às informações do que ocorria no mundo. A respeito disso, ele afirmou da importância dos “regatões” ou “mascates” que traziam além de remédios “velhas gazetas igualmente estragados pela umidade”. Nessa ocasião, o próprio estudioso francês experimentou a defasagem informativa ao afirmar que “um exemplar largado na cabana de um seringueiro informou-me, com quatro meses de atraso, dos acordos de Munique e da mobilização.” (LÉVI-STRAUSS: 342)
Cônscios dessas experiências e dificuldades, os homens da política como também, da radiodifusão no Pará passaram a instrumentalizar o rádio como meio de comunicação, informação e educativo. De tal modo, que além de levar as notícias se objetivava educar os ouvintes com aulas, por exemplo, sobre linguagem e o escrever e falar “correto”. Lévi Strauss afirmava que ao observar o modo de conversa das populações à dentro região amazônica, notava “deformações caboclas” com a “inversão dos fonemas: ‘percisa’ por precisa, ‘prefeitamente’ por perfeitamente...”. (LÉVI-STRAUSS: 342) Para os grupos intelectuais e políticos que tomavam corpo na emissora, o “broadcasting” serviria também para “civilizar” a linguagem, instruindo a melhor maneira de falar e se comunicar. Um dos colaboradores semanais da emissora paraense, Edgar Serra Freire, especialista em estudo da linguagem, proferiu um palestra pelo Rádio Clube do Pará no dia 7 de março de 1933, intitulada “a educação do povo pelo amor e uso consciente do idioma materno”.
Filha da sua época ou de épocas, a emissora cuja “voz fala e canta para a planície” experimentou, vivenciou, significou e simbolizou com a cidade de Belém múltiplas relações com os seus espaços e moradores. Sentiu necessidade de expandir seu espaço acústico para a “planície”, para o interior se tornando registro sensível na memória de gerações de populações amazônicas, se confundindo com as pessoas, os espaços, a cultura, os sonhos, o imaginário e a possibilidade do desenvolvimento. Assim, essas ondas sonoras do rádio contam capítulos importantes de múltiplas histórias desse extremo norte do país.

BIBLIOGRAFIA

CHARLOT, Monica e MARX, Roland. Londres, 1851-1901: a era vitoriana ou o triunfo as desigualdades. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, pp. 47-58
CHOAY, Françoise. “A natureza urbanizada: a invenção dos ‘espaços verdes’”. Projeto História, nº 18 (1999), pp. 103-106.
LÉVI-STRAUSS, Claude. “Amazônia” [1955]. In: Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 341-351.
MARX, Roland. “A grandiosidade britânica”. In: CHARLOT, Monica e MARX, Roland. Londres, 1851-1901: a era vitoriana ou o triunfo as desigualdades. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, pp. 21-29
MONDENARD, Anne de. “A emergência de um novo olhar sobre a cidade: as fotografias urbanas de 1870 a 1918”. Projeto História, nº 18 (1999), pp. 107-113.
RONCAYOLO, Marcel. “Transfigurações noturnas da cidade: o império das luzes artificiais”. Projeto História, nº 18 (1999), pp. 97-102.
SCHAFER, Raymond Murray. A afinação do mundo: Uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a
paisagem sonora. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

domingo, 28 de março de 2010

Lula: filho do Brasil

Autor: Gabriel F. Marinho (Cineasta e Historiador)


Fábio Barreto está diante de um desafio dos mais complicados. Chegamos a essa conclusão quando, diante de criticas justas, perguntamo-nos: “mas havia como fazer diferente”? É um desafio realizar uma narrativa cinematográfica de uma personalidade impressionantemente popular e com uma trajetória de vida que, de fato, é um drama digno de epopéias clássicas (quando comparamos, por exemplo, com o retorno de Ulysses). Ou, por vezes, parece mais próximo com narrativas de Jacob e Wilhem Griim – no caso, pensava mais nos contos de Cinderla. Por mais piegas que possa parecer, a vida de Luiz Inácio da Silva é quase uma perfeita síntese dessas histórias que, apesar de serem irreais, captam a imaginação ocidental em arquétipos e fábulas. A vida de Lula é inverossímil, apesar de real. E eis o desafio de Fábio Barreto: em um tempo em que somos muito críticos a histórias tão “absurdas e simplórias” – queremos personagens mais complexos, pessoas de “carne e osso” - fazer uma trajetória de vida que parece justamente negar essa complexidade toda. Parece.

Primeiro, a tentação de não investir em um drama lacrimoso quando a realidade já está lhe dando todos os elementos para isso. As vezes, não inserir no corte final, momentos excessivamente dramáticos, mesmo que eles tenham de fato ocorrido, para que o filme não pareça afirmar bravatas. E sim, há momentos da vida de Luis Inácio que não foram colocados no filme e, a única explicação que me parece provável, é essa: são momentos tão irreais, que não entraram para não serem tratados como “excessos”.

O segundo desafio é de ordem narrativa. O filme tem duas horas. A vida de Luis Inácio tem décadas. É preciso fazer elipses e condensar momentos. É algo inevitável. Não há espaço fílmico para tratar de alguns assuntos com a complexidade com que ocorreram. Será preciso resumir problemáticas em uma única cena. Inventar momentos que não ocorreram para representarem dois, três, quatro momentos que ocorreram de forma dispersa na vida do protagonista. É uma exigência do processo de adaptação. Não é uma fraude. Por favor, não pensem dessa forma. É preciso lembrar, de vez em quando, que se trata de um longa-metragem de ficção baseado na trajetória real de um homem. Existem exemplos complicados e exemplos simples. Uma das últimas cenas do filme ocorre dentro de uma igreja. É um momento importante da vida do então presidente do sindicato dos metalúrgicos de São Paulo. Aquele momento não ocorreu dentro da Igreja como sugere o filme. Mas foi a forma como Barreto encontrou para dizer que a Igreja Católica de São Bernardo estava envolvida com a greve.

O filme “Lula: o filho do Brasil” vai lidar com essas duas questões o tempo todo. Buscando soluções para contar alguns momentos. E inventando momentos que precisam para falarem de outros. É perceptível o esforço em conseguir ser um drama, mas não cair na armadilha dos estereótipos e soluções fáceis. Ainda que, muitas vezes, a realidade que pareça estereotipada, cheia de arquétipos. De ponto em ponto, o filme de Barreto acerta em 70% dos desafios. Uma média muito boa. Mas os 30% em que acaba se rendendo ao óbvio e piegas estão lá. Destacando-se dentro da história. Reparem, por exemplo, nos diálogos. Há momentos fantásticos, como a conversa entre o personagem Luiz Inácio da Silva e seu irmão, logo após uma revolta de trabalhadores de uma fábrica em 1963. Sem jargões marxistas – que eram bem mais comuns numa comunidade de intelectuais do que propriamente nos operários do ABC- e dotado de uma honestidade admirável, o diálogo é extremamente convincente. Reproduz idéias correntes sem cair em soluções fáceis. Uma hora mais de projeção, o filme vai escolher por soluções fáceis, como no primeiro diálogo amoroso entre os personagens de Luiz Inácio e Marisa Letícia. Ou em uma conversa que o protagonista possui com o chefe de sessão do DOPS. Esses exemplos ilustram bem a sensação que passamos com o filme... uma série de construções narrativas de qualidade, seguidas de momentos (raros, mas existentes) de linguagem bem televisiva. Na média, o filme é muito bom (até porque é um desafio não cair em tais tentações).

Alias, vários aspectos no filme seguem essa tendência: “muito bom, muito bom, muito bom, horrível, muito bom, muito bom, muito bom, horrível...”. Uma delas é a direção de arte. Calcanhar de Aquiles de muitos filmes nacionais, o trabalho desenvolvido nesse projeto é primoroso. E por ser primoroso, os escorregões (se é que são mesmo escorregões) são perceptíveis. A caracterização do nordeste brasileiro da década de 1940 é ótima. Ainda mais porque em algumas regiões pouca coisa mudou. As personagens de Glória Pires e Milhomem Cortez estão primorosamente bem caracterizados... eis então que, aparece uma amante prenha com traços faciais tão bem acabados que parecem ter saído de uma clínica de estética - em contraste com a dureza do sertão nordestino que envelhece qualquer jovem. Também causa estranheza o excesso de roupas na caracterização das crianças no nordeste. Para quem já esteve nessas regiões, sabe... meninos costumam andar nus, com pés descalços (assistam Garapa de José Padilha). Ainda sobre a direção de arte, o filme vai impor uma caracterização excepcional da favela onde vivia a família de Dona Lindu. A cena da enchente – comum nas regiões pouco abastadas da Grande São Paulo é um dos momentos de realidade mais belos do filme. Dura muito pouco, mas soma bastante. Perto do fim do filme, vemos um Luiz Inácio vivendo em uma residência que, apesar da humildade, estava longe de corresponder aos seus ganhos como operário e diretor do sindicato... para quem assistiu filmes como “ABC da Greve” e “Eles não usam black-tie”, a decoração da casa de Lula: com televisão e carro na garagem no último quinto do filme parece um escapismo. Que a vida de sindicalista lhe dá beneficies, todo mundo sabe. Mas, ao que nos consta, demora um pouco mais. Talvez, quem sabe, seja uma crítica velada de Fábio Barreto. Pode ser eu, o ingênuo, que não soube perceber que já no inicio da década de 1970, e não dez anos mais tarde como supunha, Lula já tivesse um padrão de vida maior que seus companheiros. É uma possibilidade...

A caracterização dos personagens é, de fato, ponto alto. O preparo dos atores foi excepcional. Glória Pires está formidável como Dona Lindu, e conduz o filme com maestria. Poderia, quem sabe [ mas ai, seria o meu filme sobre o Lula e não o filme de Barreto] ser menos politicamente correta. Em uma das cenas que julgo um exagero de estereótipos, por exemplo, há uma grande discussão a respeito da educação dos filhos. Dentro de uma tradição narrativa, pode parecer altamente piegas e repetitivo o debate entre o parente que quer os filhos freqüentem a escola e o outro que acha que devem trabalhar; mas de fato, essa tensão existiu na vida de Lula e foi decisiva em sua trajetória. Por mais piegas que seja, ocorreu! A cena, carregada de arquétipos, termina com um momento completamente irreal onde uma criança de menos de dez anos ameaça o próprio pai (bêbado e conhecido por ser violento com os filhos) para não agredir a mãe porque "homem não bate em mulher". Era o pequeno Lula, o predestinado (só se for). Não sei se essa cena de fato ocorreu. Me parece pouco provável. Se tiver ocorrido, eu teria tirado [ mais uma vez, é uma crítica insossa, pois seria meu filme e não o de Barreto] para não parecer bravata. Barreto teve coragem de tirar tantos momentos da vida de Lula, porque não tiraria esse? Bem, o filme trata de caracterizar Luis Inácio de forma muito realista: um homem com suas falhas, medos, inseguranças... com momentos de coragem e covardia. Por isso, essa cena é um arranhão no filme. Faz lembrar um pouco aquelas passagens bíblicas em que o jovem Jesus parece não ter a idade que tem. Bem, é o único momento. Não avaliemos o filme apenas por isso. Estávamos falando mesmo era de Dona Lindu. Pois bem, Dona Lindu não era tão ativista da educação escolar para suas filhas mulheres como foi para os homens. Isso não faria dela uma antagonista. Faria dela um ser mais complexo, uma mulher do seu tempo que... cheia de méritos, tinha suas falhas (uma falha que seria considerada acerto na década de 1950). Mas o filme, se apostou em um Lula mais humano, fez de Lindu um super humano! Mas sem traumas. O filme é sobre seu décimo-quarto filho... e a Lindu que aparece é a Lindu-mãe : aquela que ficou imortalizada na memória dos filhos. E não a Lindu-ser-humano, que certamente teria suas falhas (mas, ainda assim, seria uma mulher fantástica). Glória, como ia dizendo, foi fantástica... apesar dessa cena. Em vários momentos, reduz suas palavras ao mínimo. Interpreta apenas com o olhar, com a expressão corporal. Constrói uma personalidade coerente e de uma empatia assustadora. Se o filme é sobre o filho de Dona Lindu, é ao redor dela que se constroem as tramas.

O filme é sobre o amor de uma mãe para criar os filhos, apesar das adversidades.

Uma das cenas mais simples e bonitas do filme exprime todo argumento do filme: o jovem Luiz Inácio, então estagiário de torneiro mecânico, vai até um balde cheio de óleo e suja o próprio macacão. Não havia trabalhado naquele primeiro dia, mas apenas recebido instruções. Mas queria causar impressão na familia. Quando retorna para casa, ganha atenção da comunidade em que vive, mas principalmente de sua mãe que se entorpece de orgulho do próprio filho. Resolve fazer uma refeição para o mais jovem trabalhador da familia. É uma cena absolutamente formidável. Revela muitas coisas, sobretudo uma relação de valores que as vezes é muito difícil captar.

Rui Ricardo Dias como Luiz Inácio está surpreendentemente convincente. Trabalhou a própria voz e uma expressão corporal para aprimorar o personagem. Se o trabalho com a voz parece intermitente, ao menos, isso colabora para não deixá-la forçada. É bem convincente. Nas cenas finais, reparem, está consideravelmente mais gordo: um retrato próximo de seu biografado que, de fato, desenvolveu uma protuberante barriga depois que assumiu a presidência do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo. A história de sua seleção para o papel é um capítulo a parte. Ele fez teste de elenco para vários personagens masculinos coadjuvantes. Até que, por acaso, fez o teste para o protagonista e acabou convencendo o diretor. Em geral, ficções biográficas não se apegam tanto na proximidade física entre atores e seus biografados. Preferem apostar numa interpretação legitimada pelo público. As vezes, apostam em figuras que estejam em alta no estrelato – caso de Russel Crowe que interpretou o matemático John Nash Jr. em Uma mente brilhante (EUA, 2001). Ou, por vezes, apostam em semelhanças afetivas entre ator e personagem: como escolher Robin Williams para interpretar o médico Pach Adams – quando eu conheci o médico que inspirou o filme, há alguns anos atrás na Universidade de Brasília, fiquei absurdamente surpreso com a falta de semelhança física entre os dois. Sobre o jovem, e não mais desconhecido ator, a surpresa foi muito positiva. Primeiro porque seu talento foi capaz de fazer a equipe apostar nesse mineiro. E é sempre louvável quando coragem de uns combina-se com o talento de outros. Dias não traz nas costas o peso de uma série de personagens pelo qual será lembrado (e confundido). Problema que Glória teve de vencer: não bastava ser uma Dona Lindu convincente, era preciso fazer o público esquecer, pelo menos por duas horas, de todos os personagens que ela ganhou notoreidade. Naquele momento, Glória não era outra coisa a não ser Lindu. Dias não enfrentou esse desafio (realmente grande na carreira de qualquer ator), mas enfrentou justamente a falta de pré-conceitos. Contou com a coragem. E contou também com a sorte. Afinal, o ator Tay Lopes, escalado para o papel precisou desistir. A sorte vira para alguns. Dias e Luiz Inácio da Silva tem isso em comum. O segundo tem bem mais que o primeiro, pelo menos, até agora.

No mais, chama atenção tecnicamente a trilha-sonora. É majestosa. Acompanha com perfeição os momentos do filme, em um desenho de som absolutamente primoroso. O trabalho de Antônio Pinto com violinos e outros instrumentos de corda merece atenção especial. É graças a combinação de trilha que o filme pode apostar em caracterizações menos dramáticas, sem perder a carga emocional.

Falemos, finalmente, dos temas mais polêmicos. Pois o filme é bem mais protesto e contestação do que merecia ser. Antes de mais nada, trata-se da história de amor de uma mãe retirante, com uma dezena de filhos, na grandiosa e assustadora São Paulo da década de 1950. Superando dificuldades reais, apesar do analfabetismo e das necessidades básicas, ela coordena o amadurecimento de seus pequenos e pequenas com uma maestria impressionante. A sua falta de etiqueta é combinada com uma astúcia que em nada tem haver com uma educação escolar. Os filhos que sobreviveram (há referências sutis a mortalidade infantil que levou vários irmãos de Luiz Inácio) foram criados por uma mãe exigente, amorosa e benevolente. O filme dá especial atenção a um dos mais novos filhos de Dona Lindu. Mas parece mesmo mais um recorte narrativo do que uma sugestão que houvesse um tratamento diferenciado entre os dois (saber construir essa idéia é um grande mérito do roteiro). Lula, esse filho que o filme vai dar especial atenção, é caracterizado por ser mais inteligente, por ter uma capacidade comunicativa grande (afinal, todos querem que ele entre no sindicato por acharem que ele leva jeito para coisa... menos ele) mas por ser emocionalmente fraco, hesitante nas suas decisões e, pasmem, por ser excessivamente tolerante com algumas questões... o Luiz Inácio, personagem, demora para radicalizar-se e, ainda assim, o faz com ponderações. Que Luiz Inácio seria esse? Aquele que conhecemos entre 1979-1989 ou aquele que venceu as eleições de 2002? Talvez o Barreto esteja querendo dizer que ele sempre foi o mesmo – nem tão radical quanto pareceu à classe média durante a década de 1980, nem tão moderado quanto parece atualmente. Ou, talvez, numa licença poética, Barreto esteja falando mais de um Lula de cinqüenta e tantos anos (na verdade, ele já é sexagenário) do que o Lula de trinta e cinco anos. Quem sabe...

De qualquer forma, até os minutos finais do filme, a história de vida da família Silva é uma trajetória de sucesso, apesar de cicatrizes muito dolorosas (como a morte de entes muito queridos). Mas não há nada de macrosocial. O filme é mais belo por isso: retrata um sistema de valores próprios daquela comunidade. Quem ficaria feliz por ter sido empregado em uma fábrica e saber que trabalhará mais de doze horas por dia e terá os salários arrochados pela inflação galopante? O jovem Luis Inácio, sabendo da exclusão social que estava submetido pela deficiência física, vibra no dia da sua contratação e leva o público a sensibilizar-se com ele. É tão pouco. Mas, ao mesmo tempo, é tanto. Minutos finais do último rolo e Barreto resolve explorar a projeção do jovem presidente do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo como absolutamente casual. Fruto de coincidências políticas e acasos. Talvez, o sucesso seja mesmo isso – já mostra a seleção de Dias para o papel. De desconhecido metalúrgico no ABC, pessoa invisível no meio de milhões de trabalhadores, torna-se rapidamente a figura política de maior capacidade de mobilização social no país – ainda que não se dê conta disso. E...e... e o filme termina aqui. Pronto! E foi excelente essa escolha de Barreto. O filme não faz menções ao PT ou a sua carreira como político em espaços de negociação e barganha. O argumento do filme não é esse, e Fábio Barreto soube respeitá-lo muito bem: não caiu na tentação de querer falar de tudo. Se o projeto era falar da relação entre mãe e filho, o filme termina na morte de Dona Lindu. Ela simboliza o momento em que essa história deve ter fim[1]. A partir dali, outra história haverá. Um Luis Inácio público, e não mais intimo (como que o filme pretendeu). Se sentirem falta dessa parte, por favor, escrevam o roteiro e façam o projeto. Pode ser que o resultado seja excepcional. Mas acho incabíveis as críticas a respeito daquilo que o filme não disse. O que o filme não disse, realmente não fazia parte desse filme. Talvez, falam parte de outro filme. Há tantos projetos cinematográficos que querem falar de tantas coisas e acabam se perdendo. Não falando de nada com profundidade merecida. Esse projeto, com todas as críticas justas que devem ser feitas, não sofre desse mal. Aquele não é o Lula que conhecemos. Aquele é um Lula personagem. Irreal para falar algo sobre o real. Mas, não se esqueçam, irreal. Sobretudo, encaremos aquele Luiz Inácio feito por Fábio Barreto como um prólogo desse que, hoje, caminha para seus últimos meses na presidência da República.

Polêmica forte, na verdade, ocorre fora dos 24 quadros por segundo em que a obra se materializa como projeto cultural, e não como produto cientifico- vou insistir nesse ponto, apesar de ter certeza que serei vencido pela expectativa da maioria dos expectadores. Ponto que gerou debates, e ainda gera, é a possível utilização de dinheiro público para custear o filme. Se isso tivesse ocorrido, não seria nenhuma ilegalidade. A produção cinematográfica brasileira é custeada por incentivos estatais através de editais e leis de incentivo. Isso é uma realidade comum em quase todos os países do mundo. Excetuando-se Estados Unidos, França e Índia : únicas praças cinematográficas em que a produção de cinema é uma atividade rentável. Ou seja, somente nesses três países, a situação em que a soma de todas as receitas ganhas no cinema é maior que a soma de todas as despezas. Ainda assim, em outros momentos de sua história, esses países subsidiaram, e muito, a produção e distribuição de seus filmes[2]. Por isso, o apoio estatal é essencial em qualquer lugar que se faça cinema. Tentamos viver sem esse apoio no inicio da década de 1990 e o resultado foi muito ruim. Isso não significa que cinema não é algo para a iniciativa privada. É. Mas é preciso que haja uma combinação de interesses. É muito complicado convencer uma empresa a aplicar milhões de reais em um filme de retorno incerto. A iniciativa provada quer lucro, realizadores querem fazer filmes... e o Estado acaba participando como fiador. Pois bem, eu não conheço – deve haver, mas confesso minha ignorância – nenhum filme de longa-metragem nacional com distribuição comercial que não tenha utilizado de editais públicos para custear parte do orçamento. Os editais dificilmente conseguem cobrir 100%. Mas deixam “aquilo que sobra” dentro de uma margem em que a iniciativa privada sente-se segura em participar. Essa é uma prática generalizada. Para se ter uma idéia, mesmo os filmes da produtora GLOBO FILMES (que são retorno comercial certo) participam desses editais e, dessa forma, abatem parte considerável de seus custos. Quando soube que esse filme estava sendo feito, nem mesmo questionei se estaria ou não utilizando-se de dinheiro público. Conclui, naturalmente, que estava. E julguei que, independente dos méritos artísticos do filme, seria uma enorme polêmica fazê-lo. Não consegui julgar se certo ou errado. Afinal, como defensor de uma liberdade amoral (e não imoral), teria de apoiar uma iniciativa de fazer qualquer filme. Mesmo um filme sobre o Presidente da República que está no poder. Mas, confesso, a situação é altamente desconfortável.

Os editais públicos que contemplam esses projetos podem ser alvo de questionamento. Mas estão cada vez mais austeros, ainda que carecem de alguns aperfeiçoamentos. De qualquer forma, Fábio Barreto tem um nome forte na tradição do cinema no Brasil. Seria capaz de propor um projeto altamente exemplar e sem cometer falhas que poderiam desqualificá-lo (como erros no orçamento ou projeções irreais de realização). Também possui um excelente currículo, o que numa analise de experiência profissional – que conta pontos em muitos desses editais – poderia ajudá-lo. Enfim, um avaliador (mesmo aquele absolutamente criterioso e justo) provavelmente estaria diante de uma situação altamente desconfortável: uma vez que o projeto teria sido aprovado em todas as etapas eliminatórias, só restaria desqualificá-lo por conta da temática – situação em que nenhuma banca de seleção quer passar, ainda mais tendo de fazer com um filme de um diretor já indicado ao Oscar. Lembro de comentar com alguns amigos durante o último ano a provável cadeia de constrangimentos que esse projeto deve ter causado – sem razões técnicas para eliminá-lo, só restaria fazê-lo por questões políticas.

Mas isso nunca ocorreu. A situação que imaginei no parágrafo anterior é completamente fictícia, apesar de verossímil. A produção do filme, sabendo dessa polêmica, fez uma aposta arriscada. Decidiu fazer um longa-metragem sem apoio financeiro do Estado. Arrecadou 16 milhões de reais. Para se ter uma idéia, o maior faturamento do cinema nacional não chega a 10 milhões de reais. Antes do filme começar, somos apresentados a dezenas de marcas de empresa que decidiram patrocinar. Um risco financeiro dessa magnitude deve ser compartilhado, obviamente. Assim, fez-se o primeiro (pelo menos do meu conhecimento) longa-metragem brasileiro de distribuição comercial sem incentivos do Estado. Isso não exclui algumas críticas, por favor. Mas, justiça seja feita, os livra de uma série de questionamentos éticos que estão sendo submetidos (dos quais, alguns críticos, convenientemente, estão sendo surdos). Podemos, por exemplo, ponderar as razões que levaram tantas empresas a colocarem dinheiro nessa produção. Mas sem fazer demagogias absurdas – há sempre interesses políticos nas ações de patrocínio. Quando empresas nos Estados Unidos ou na França entram como patrocinadores de produções culturais, possuem interesses estratégicos em vincular suas marcas ao produto. Não é diferente no caso brasileiro. Existem razões para cada uma delas terem aceitado tal investimento. Quem não quer uma aproximação de imagem com um presidente que possui uma popularidade como a que possui Lula? As vezes, as aproximações tem interesses bem questionáveis – como a vinculação do empresário Eike Batista no projeto (justamente quando parece requerer o apoio do Palácio do Planalto para executar seus interesses junto a Vale). Essa vinculação de política e atividade cinematográfica é impossível de não ser feita, creio eu. Pode ser atenuada. Ou pode ser intensificada até níveis imorais. Mas acho difícil que não seja feita.

Assim, excluindo a possibilidade de desvios de verbas públicas e de tráfico de influência – o que apesar da possibilidade, não deve ser tratado como afirmação; a produção de Lula, o filho do Brasil esquivou-se de um dilema ético com muito malabarismo, habilidade e competência. As criticas, então, que caiam sobre a iniciativa privada.

Encerrando essa questão, o diretor Fábio Barreto foi questionado por um jornalista há algumas semanas atrás sobre o tema. Naturalmente, isso foi antes de ter sofrido o acidente de automóvel que o deixou em coma. O jornalista, na verdade, fez uma afirmação, não uma pergunta. Disse que se o presidente Lula tivesse ética só permitiria o lançamento desse filme em 2011. Incrível, não? Felizmente passamos da fase do regime militar em que o mandatário do executivo poderia interferir em assuntos de caráter não-público. O presidente não tem tal autoridade. Não decide por tais assuntos. Mesmo que o filme tivesse usado de incentivos públicos, o que nem ao menos ocorreu. Fábio Barreto disse-lhe isso. Diz que a decisão foi dele, e que não haveria maior cabimento perguntar ao presidente se haveria sua permissão. Mais uma vez, ainda bem que o sistema político nosso permite uma democracia que possa ser crítica ou favorável espontaneamente, sem pedir permissão. Na visão dele e de sua produtora, o lançamento do filme nesse momento, inicio de 2010 se aproveita da alta popularidade do Presidente para garantir bilheteria (numa analise bem amoral, seria o mesmo que lançar um filme para o público infanto-juvenil na época de férias... mas o mundo é mais complexo do que parece). Barreto defende que é ele que está se aproveitando da popularidade do Presidente para lançar o filme, e não o contrário. Questionável, mas faz sentido. Dada a instabilidade do mercado cinematográfico, é bem mais provável que seja Fábio Barreto que esteja se aproveitando... fazer um filme sobre um presidente popular e lançá-lo ainda na vigência de seu mandato é garantia de sucesso comercial. Para o presidente Lula, o filme pouco deve alterar sua popularidade – afinal, se os números de pesquisa forem realmente corretos, aqueles que não aprovam seu governo possuem uma opinião cristalizada e não irão mudar de idéia por conta do filme.

E sobre a possibilidade de que o filme seja usado como peça eleitoral? Se não diretamente, ao menos indiretamente? Existe essa possibilidade, é claro. E os agentes publicitários do Partido dos Trabalhadores devem buscar usar essa ferramenta, naturalmente. Não sei como, mas acho que veremos em 2010 esse filme ser usado de muitas formas. Mas também vimos nas eleições de 2002 e 2006 que a popularidade do presidente não é facilmente transferível. Se é ingênuo pensar que o filme não será tratado como peça publicitária (porque em época de eleição tudo vira material publicitário, até aquilo que nunca teve tal finalidade); é igualmente ingênua a posição daqueles que acham que o filme possui um potencial de mobilização de almas. Já superamos a década de 1930 em que Leni Riefesthein realizou o clássico nazista Triumfo da Vontade (ALE, 1934). Por favor, não quero fazer comparações ideológicas desses dois filmes. São diametralmente opostos. Estou apenas destacando que os críticos estão supervalorizando demais o projeto de Fábio Barreto. Atribuindo a ele poderes irreais. Poderes bem menores, por exemplo, do que fazer edições tendenciosas em debates políticos ou colocar em pauta de debates o passado intimo-afetivo dos candidatos. Isso sim, pelo que vimos, é o que influência decisivamente o público na hora do voto.

Não sei se estava nos plano do diretor Fábio Barreto. Não sei se ele imaginava essa polêmica toda. Ou se acreditava, ingenuamente, que a opção pelo não-financiamento do Estado poderia poupá-lo de tal. Não sei. Mas o que os críticos estão conseguindo (e pasmem, já havia laudas e laudas de criticas antes mesmo que o projeto estivesse pronto) é tornar um filme que era apenas “bom” ser tão debatido quanto uma obra “genial”. As pessoas estão indo ao cinema para ver esse filme polêmico – porque a polêmica, em uma síntese bem típica de Nelson Rodrigues, sempre radicaliza e atrai. O filme está mais comentado que muitos outros projetos que, esteticamente melhores, estão passando o verão ofuscados. E quem está produzindo isso são os próprios críticos, gerando uma áurea de atração e repulsa que, mesmo que gere opiniões contrárias, levará inevitavelmente todos ao cinema. E vai estimular no público opiniões polarizadas: perfeito/horrível... justamente para um filme que parece apostar num discurso ameno.

Por isso, preferi escrever antes sobre o filme, e depois sobre a polêmica. Afinal, pouco se disse do que acontece nos 24 quadros por segundo. E minha sugestão continua sendo que as pessoas assistam e tirem suas próprias conclusões – positivas ou negativas – mas que não sejam ancoradas naquilo que foi dito por pessoas que já tinham opiniões formadas sobre o filme antes mesmo de assistirem.

Retornando ao que interessa: o filme. Tenho uma forte crítica a fazer. O título do filme. Em um projeto que passa 120 minutos tentando não cair em soluções fáceis e tratamentos piegas para temas tão dramáticos, existe algum “escorrego” maior que esse título? Junto com a cena em que o menino Lula enfrenta o próprio pai, o título do filme parecem ser indícios santificantes do personagem. São cicatrizes em um trabalho tão bem feito em não torná-lo divino, e sim, humano. Mudaria o título. Pensei em várias outras possibilidades. Nenhuma me convenceu, mas na minha opinião, todas eram melhores do que Lula, o filho do Brasil. Mas ai, volto a fazer uma auto-crítica: esse comentário é fruto daquilo que eu queria como filme para o Lula. É preciso entender o que o filme pretende.

A prática cultural do Boi Bumbá na cidade de Belém (primeira parte)

Autor: José do Espírito Santos Dias Júnior (Historiador)

Uma das muitas expressões da cultura popular brasileira é o “boi bumba”, comédia satírica que se manifesta em várias partes do país, tanto no meio rural como urbano. Sua prática folclórica é revestida de representações peculiares na expressão e no enredo, que se moldam à realidade de cada região onde acontece. Em alguns Estados ela está relacionada ao ciclo natalino, de novembro ao dia de reis, em 6 de janeiro; na região norte e parte do nordeste vincula-se as festas juninas dedicadas aos santos do mês. Esta variação do calendário festivo também é marcada pela mudança nomenclatural, são várias as denominações espalhadas pelo Brasil, sendo as mais comuns as de “bumba meu boi” e “boi bumba”. No Estado do Pará é denominado de “boi bumba”, uma expressão provavelmente alusiva ao termo africano bumba, “instrumento de percussão, tambor, que pode derivar do quicongo mbumba, bater”. (SALLES, 2004: 193-200)
A cultura do boi bumbá em Belém está intimamente relacionada à história da cidade e parece ter origens remotas. Ernesto Cruz afirma que as manifestações de batuques e toadas em festas de São João surgiram com os primeiros colonos “que na noite de santo acenderam as primeiras fogueiras no vale amazônico” (CRUZ, 1944:124-126), Salles por sua vez, conta que desde 1850 já se fazia menção a um “turbulento Boi Caiado” (SALLES, 2004:195) em jornais da cidade. Este boi se manifestava pelos subúrbios juntamente com capoeiras, promovendo arruaças e desordens, sendo por isso constantemente contido pela polícia. Os espetáculos contavam com a presença predominante de pessoas do povo, que tinham nesta manifestação uma forma de extravasar suas aptidões lúdicas e sociais, uma “brincadeira” no dizer de seus participantes, que ganhava significados muito expressivos entre os meses de maio e agosto.
O simbolismo do bumbá não deixou de lograr algumas referências sutís e estilizadas da resistência negra ao processo opressor do branco colonizador. O “auto popular” foi revestido de pura ironia, uma vez que a dramatização e o desfecho da peça se caracterizavam pelo desafio empregado pelos personagens ligados a escravidão, ao branco colonizador, propiretário do boi e da fazenda. Menezes atribui este comportamento as reminiscências nobres presentes na linhagem dos cativos:
Esses personagens africanos seriam superiores, conscientes de sua linhagem, e que, não podendo impor-se pela força, ou violência, conclamando quantos os obedeciam, recorrem às armas dos farçantes? Por que não vermos nesta atitude a afirmativa de que eles eram “nobres”, para o seu povo, mesmo no terrivel exílio. (MENEZES, 1972:25)

Os significados da comédia guardam aspectos explícitos de uma cultura “cômica popular e pública” (BAKHTIN, 2008:1-50), na qual os elementos sociais representados revestem-se de imagens sarcásticas ridicularizadas pelos personagens em gestos e comportamentos parodiados da vida cotidiana. A ironia dá o tom da mensagem passada ao público como forma de zombaria e vingança do povo oprimido, que no caso específico do boi, estaria relacionado aos negros utilizados como cativos durante a história da escravidão no Brasil.
Em Belém a história do bumbá pode ser dividida em duas etapas. Uma primeira que compreende o final do século XIX e início do XX, identificada pela apresentação de um “boi de rua”, satírico que reproduzia a representação pastoril dos personagens envolvidos com o processo de colonização, uma fase marcada por apresentações ao ar livre e confrontos violentos entre seus participantes; e um segundo momento caracterizado pela mudança e consequente adaptação do “boi de rua” para o “boi de teatro” com exibições controladas e circunscritas aos “currais” e “terreiros”(1) , geralmente sediados nos subúrbios, principalmente a partir dos anos trinta.
Durante boa parte do século XIX até as primeiras décadas do XX a imagem do boi bumbá esteve ligada à vadiagem e a capoeiragem, traços de identificação do folguedo em Belém. Ele protagonizou brigas acirradas entre grupos rivais que percorriam as ruas da cidade em apresentações nem sempre tranquilas, pois quando havia os “encontros” entre dois “contrarios” (2) era inevitável a “indefectivel briga entre bairros para provar a liderança do grupo local, o favorito, o maior”(RIBEIRO, 1965:100). A divisão dos grupos em territórios acirrava as rivalidades principalmente porque os espaços de circulação para apresentação determinavam o sucesso dos bois na cidade, cada boi tinha o seu território demarcado e enfrentava fortes retaliações do boi rival caso invadisse o espaço alheio.

Quando os bumbás se encontravam em via pública, havia escaramuça feia em que muitos recebiam ferimentos graves. Só a presença da cavalaria é que dispersava os contendores. Os mais exaltados iam em cana e os ‘bois’, apreendidos, eram queimados no distrito policial. (A Provincia do Pará, 04/06/1967: 04)

Motivados pelos “encontros” violentos os grupos de bumba utilizaram-se da figura do capoeira como elemento de defesa. Ele satisfêz a necessidade que os bumbás tinham de ter em seus planteis homens bem preparados para participar das lutas corporais generalizadas, pois assumiam posições estratégicas no auto, ocupando inclusive o papel de “tripa” (3), o mais vulnerável no momento dos combates devido o mesmo ter que carregar a pesada carcaça do boi.
Mas não foi apenas a presença dos capoeiras que motivou as rivalidades entre os bumbas no início do século XX, as brigas apresentavam raízes remotas, uma vez que a motivação da luta e a preparação para os confrontos afloravam resquícios acestrais das guerras intertribais entre aldeias africanas, lembranças de suas origens étnicas trazidas para as novas terras com a escravidão e reconfiguradas no cenário urbano, principalmente após a abolição.
As constantes brigas e arruaças obrigaram a polícia a operar de forma repressiva proibindo a saída dos bumbás nas ruas. Por volta do ano de 1905 essa proibição foi posta em prática motivada por um conflito ocorrido no interior do boi bumbá “Canário”, resultando na morte de Golemada, famoso brincante de boi da cidade. Até 1915 os bumbás ficaram afastados das ruas, se mantendo, provavelmente, em apresentações escondidas pela periferia da cidade. Durante este período a intensa repressão policial rendeu na prisão de muitos brincantes e na incineração dos bois.
A repressão aos bumbas foi ambientada no contexto de desenvolvimento da economia da borracha na região, as preocupações da intendência em disciplinar as áreas centrais através das posturas municipais voltadas para obras de saneamento, asseio e embelezamento procuravam fazer da cidade um modelo de civilidade que não contemplava as práticas culturais de parte da população pobre, em sua maioria negra.
Quando voltaram à cena em 1915, os bumbas estavam reorganizados e em maior número, os encontros foram reestabelecidos sob nova configuração, surgiram os amos tiradores de toadas muito respeitados “pelo poder de improvisação nos encontros onde a arma de combate era a resposta pronta, a glosa ao mote do contrário” (RIBEIRO, 1965:100). Juntamente com os amos surgiu a figura do “dono do boi”, o organizador, divulgador e provedor da peça, o lider da brincadeira que oferecia sua residência como “curral”, lugar por excelência das apresentações, um verdadeiro teatro popular que atraía os inflamados torcedores. Essas mudanças ocorridas como efeito da política repressiva aos bumbás, ganharam outras motivações nas décadas seguintes.

Notas.
1. Os currais e terreiros eram espaços amplos dedicados às exibições dos bumbás, geralmente localizados em quintais.
2. São termos usados pelos brincantes do boi bumbá, nos quais os “encontros” designavam o momento de encontro e combate entre os bois rivais, e “contrario” o termo utilizado para identificar o boi rival.
3. Termo utilizado para denominar o homem que carrega o boi bumbá.