domingo, 28 de março de 2010

A prática cultural do Boi Bumbá na cidade de Belém (primeira parte)

Autor: José do Espírito Santos Dias Júnior (Historiador)

Uma das muitas expressões da cultura popular brasileira é o “boi bumba”, comédia satírica que se manifesta em várias partes do país, tanto no meio rural como urbano. Sua prática folclórica é revestida de representações peculiares na expressão e no enredo, que se moldam à realidade de cada região onde acontece. Em alguns Estados ela está relacionada ao ciclo natalino, de novembro ao dia de reis, em 6 de janeiro; na região norte e parte do nordeste vincula-se as festas juninas dedicadas aos santos do mês. Esta variação do calendário festivo também é marcada pela mudança nomenclatural, são várias as denominações espalhadas pelo Brasil, sendo as mais comuns as de “bumba meu boi” e “boi bumba”. No Estado do Pará é denominado de “boi bumba”, uma expressão provavelmente alusiva ao termo africano bumba, “instrumento de percussão, tambor, que pode derivar do quicongo mbumba, bater”. (SALLES, 2004: 193-200)
A cultura do boi bumbá em Belém está intimamente relacionada à história da cidade e parece ter origens remotas. Ernesto Cruz afirma que as manifestações de batuques e toadas em festas de São João surgiram com os primeiros colonos “que na noite de santo acenderam as primeiras fogueiras no vale amazônico” (CRUZ, 1944:124-126), Salles por sua vez, conta que desde 1850 já se fazia menção a um “turbulento Boi Caiado” (SALLES, 2004:195) em jornais da cidade. Este boi se manifestava pelos subúrbios juntamente com capoeiras, promovendo arruaças e desordens, sendo por isso constantemente contido pela polícia. Os espetáculos contavam com a presença predominante de pessoas do povo, que tinham nesta manifestação uma forma de extravasar suas aptidões lúdicas e sociais, uma “brincadeira” no dizer de seus participantes, que ganhava significados muito expressivos entre os meses de maio e agosto.
O simbolismo do bumbá não deixou de lograr algumas referências sutís e estilizadas da resistência negra ao processo opressor do branco colonizador. O “auto popular” foi revestido de pura ironia, uma vez que a dramatização e o desfecho da peça se caracterizavam pelo desafio empregado pelos personagens ligados a escravidão, ao branco colonizador, propiretário do boi e da fazenda. Menezes atribui este comportamento as reminiscências nobres presentes na linhagem dos cativos:
Esses personagens africanos seriam superiores, conscientes de sua linhagem, e que, não podendo impor-se pela força, ou violência, conclamando quantos os obedeciam, recorrem às armas dos farçantes? Por que não vermos nesta atitude a afirmativa de que eles eram “nobres”, para o seu povo, mesmo no terrivel exílio. (MENEZES, 1972:25)

Os significados da comédia guardam aspectos explícitos de uma cultura “cômica popular e pública” (BAKHTIN, 2008:1-50), na qual os elementos sociais representados revestem-se de imagens sarcásticas ridicularizadas pelos personagens em gestos e comportamentos parodiados da vida cotidiana. A ironia dá o tom da mensagem passada ao público como forma de zombaria e vingança do povo oprimido, que no caso específico do boi, estaria relacionado aos negros utilizados como cativos durante a história da escravidão no Brasil.
Em Belém a história do bumbá pode ser dividida em duas etapas. Uma primeira que compreende o final do século XIX e início do XX, identificada pela apresentação de um “boi de rua”, satírico que reproduzia a representação pastoril dos personagens envolvidos com o processo de colonização, uma fase marcada por apresentações ao ar livre e confrontos violentos entre seus participantes; e um segundo momento caracterizado pela mudança e consequente adaptação do “boi de rua” para o “boi de teatro” com exibições controladas e circunscritas aos “currais” e “terreiros”(1) , geralmente sediados nos subúrbios, principalmente a partir dos anos trinta.
Durante boa parte do século XIX até as primeiras décadas do XX a imagem do boi bumbá esteve ligada à vadiagem e a capoeiragem, traços de identificação do folguedo em Belém. Ele protagonizou brigas acirradas entre grupos rivais que percorriam as ruas da cidade em apresentações nem sempre tranquilas, pois quando havia os “encontros” entre dois “contrarios” (2) era inevitável a “indefectivel briga entre bairros para provar a liderança do grupo local, o favorito, o maior”(RIBEIRO, 1965:100). A divisão dos grupos em territórios acirrava as rivalidades principalmente porque os espaços de circulação para apresentação determinavam o sucesso dos bois na cidade, cada boi tinha o seu território demarcado e enfrentava fortes retaliações do boi rival caso invadisse o espaço alheio.

Quando os bumbás se encontravam em via pública, havia escaramuça feia em que muitos recebiam ferimentos graves. Só a presença da cavalaria é que dispersava os contendores. Os mais exaltados iam em cana e os ‘bois’, apreendidos, eram queimados no distrito policial. (A Provincia do Pará, 04/06/1967: 04)

Motivados pelos “encontros” violentos os grupos de bumba utilizaram-se da figura do capoeira como elemento de defesa. Ele satisfêz a necessidade que os bumbás tinham de ter em seus planteis homens bem preparados para participar das lutas corporais generalizadas, pois assumiam posições estratégicas no auto, ocupando inclusive o papel de “tripa” (3), o mais vulnerável no momento dos combates devido o mesmo ter que carregar a pesada carcaça do boi.
Mas não foi apenas a presença dos capoeiras que motivou as rivalidades entre os bumbas no início do século XX, as brigas apresentavam raízes remotas, uma vez que a motivação da luta e a preparação para os confrontos afloravam resquícios acestrais das guerras intertribais entre aldeias africanas, lembranças de suas origens étnicas trazidas para as novas terras com a escravidão e reconfiguradas no cenário urbano, principalmente após a abolição.
As constantes brigas e arruaças obrigaram a polícia a operar de forma repressiva proibindo a saída dos bumbás nas ruas. Por volta do ano de 1905 essa proibição foi posta em prática motivada por um conflito ocorrido no interior do boi bumbá “Canário”, resultando na morte de Golemada, famoso brincante de boi da cidade. Até 1915 os bumbás ficaram afastados das ruas, se mantendo, provavelmente, em apresentações escondidas pela periferia da cidade. Durante este período a intensa repressão policial rendeu na prisão de muitos brincantes e na incineração dos bois.
A repressão aos bumbas foi ambientada no contexto de desenvolvimento da economia da borracha na região, as preocupações da intendência em disciplinar as áreas centrais através das posturas municipais voltadas para obras de saneamento, asseio e embelezamento procuravam fazer da cidade um modelo de civilidade que não contemplava as práticas culturais de parte da população pobre, em sua maioria negra.
Quando voltaram à cena em 1915, os bumbas estavam reorganizados e em maior número, os encontros foram reestabelecidos sob nova configuração, surgiram os amos tiradores de toadas muito respeitados “pelo poder de improvisação nos encontros onde a arma de combate era a resposta pronta, a glosa ao mote do contrário” (RIBEIRO, 1965:100). Juntamente com os amos surgiu a figura do “dono do boi”, o organizador, divulgador e provedor da peça, o lider da brincadeira que oferecia sua residência como “curral”, lugar por excelência das apresentações, um verdadeiro teatro popular que atraía os inflamados torcedores. Essas mudanças ocorridas como efeito da política repressiva aos bumbás, ganharam outras motivações nas décadas seguintes.

Notas.
1. Os currais e terreiros eram espaços amplos dedicados às exibições dos bumbás, geralmente localizados em quintais.
2. São termos usados pelos brincantes do boi bumbá, nos quais os “encontros” designavam o momento de encontro e combate entre os bois rivais, e “contrario” o termo utilizado para identificar o boi rival.
3. Termo utilizado para denominar o homem que carrega o boi bumbá.

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