domingo, 28 de março de 2010

Lula: filho do Brasil

Autor: Gabriel F. Marinho (Cineasta e Historiador)


Fábio Barreto está diante de um desafio dos mais complicados. Chegamos a essa conclusão quando, diante de criticas justas, perguntamo-nos: “mas havia como fazer diferente”? É um desafio realizar uma narrativa cinematográfica de uma personalidade impressionantemente popular e com uma trajetória de vida que, de fato, é um drama digno de epopéias clássicas (quando comparamos, por exemplo, com o retorno de Ulysses). Ou, por vezes, parece mais próximo com narrativas de Jacob e Wilhem Griim – no caso, pensava mais nos contos de Cinderla. Por mais piegas que possa parecer, a vida de Luiz Inácio da Silva é quase uma perfeita síntese dessas histórias que, apesar de serem irreais, captam a imaginação ocidental em arquétipos e fábulas. A vida de Lula é inverossímil, apesar de real. E eis o desafio de Fábio Barreto: em um tempo em que somos muito críticos a histórias tão “absurdas e simplórias” – queremos personagens mais complexos, pessoas de “carne e osso” - fazer uma trajetória de vida que parece justamente negar essa complexidade toda. Parece.

Primeiro, a tentação de não investir em um drama lacrimoso quando a realidade já está lhe dando todos os elementos para isso. As vezes, não inserir no corte final, momentos excessivamente dramáticos, mesmo que eles tenham de fato ocorrido, para que o filme não pareça afirmar bravatas. E sim, há momentos da vida de Luis Inácio que não foram colocados no filme e, a única explicação que me parece provável, é essa: são momentos tão irreais, que não entraram para não serem tratados como “excessos”.

O segundo desafio é de ordem narrativa. O filme tem duas horas. A vida de Luis Inácio tem décadas. É preciso fazer elipses e condensar momentos. É algo inevitável. Não há espaço fílmico para tratar de alguns assuntos com a complexidade com que ocorreram. Será preciso resumir problemáticas em uma única cena. Inventar momentos que não ocorreram para representarem dois, três, quatro momentos que ocorreram de forma dispersa na vida do protagonista. É uma exigência do processo de adaptação. Não é uma fraude. Por favor, não pensem dessa forma. É preciso lembrar, de vez em quando, que se trata de um longa-metragem de ficção baseado na trajetória real de um homem. Existem exemplos complicados e exemplos simples. Uma das últimas cenas do filme ocorre dentro de uma igreja. É um momento importante da vida do então presidente do sindicato dos metalúrgicos de São Paulo. Aquele momento não ocorreu dentro da Igreja como sugere o filme. Mas foi a forma como Barreto encontrou para dizer que a Igreja Católica de São Bernardo estava envolvida com a greve.

O filme “Lula: o filho do Brasil” vai lidar com essas duas questões o tempo todo. Buscando soluções para contar alguns momentos. E inventando momentos que precisam para falarem de outros. É perceptível o esforço em conseguir ser um drama, mas não cair na armadilha dos estereótipos e soluções fáceis. Ainda que, muitas vezes, a realidade que pareça estereotipada, cheia de arquétipos. De ponto em ponto, o filme de Barreto acerta em 70% dos desafios. Uma média muito boa. Mas os 30% em que acaba se rendendo ao óbvio e piegas estão lá. Destacando-se dentro da história. Reparem, por exemplo, nos diálogos. Há momentos fantásticos, como a conversa entre o personagem Luiz Inácio da Silva e seu irmão, logo após uma revolta de trabalhadores de uma fábrica em 1963. Sem jargões marxistas – que eram bem mais comuns numa comunidade de intelectuais do que propriamente nos operários do ABC- e dotado de uma honestidade admirável, o diálogo é extremamente convincente. Reproduz idéias correntes sem cair em soluções fáceis. Uma hora mais de projeção, o filme vai escolher por soluções fáceis, como no primeiro diálogo amoroso entre os personagens de Luiz Inácio e Marisa Letícia. Ou em uma conversa que o protagonista possui com o chefe de sessão do DOPS. Esses exemplos ilustram bem a sensação que passamos com o filme... uma série de construções narrativas de qualidade, seguidas de momentos (raros, mas existentes) de linguagem bem televisiva. Na média, o filme é muito bom (até porque é um desafio não cair em tais tentações).

Alias, vários aspectos no filme seguem essa tendência: “muito bom, muito bom, muito bom, horrível, muito bom, muito bom, muito bom, horrível...”. Uma delas é a direção de arte. Calcanhar de Aquiles de muitos filmes nacionais, o trabalho desenvolvido nesse projeto é primoroso. E por ser primoroso, os escorregões (se é que são mesmo escorregões) são perceptíveis. A caracterização do nordeste brasileiro da década de 1940 é ótima. Ainda mais porque em algumas regiões pouca coisa mudou. As personagens de Glória Pires e Milhomem Cortez estão primorosamente bem caracterizados... eis então que, aparece uma amante prenha com traços faciais tão bem acabados que parecem ter saído de uma clínica de estética - em contraste com a dureza do sertão nordestino que envelhece qualquer jovem. Também causa estranheza o excesso de roupas na caracterização das crianças no nordeste. Para quem já esteve nessas regiões, sabe... meninos costumam andar nus, com pés descalços (assistam Garapa de José Padilha). Ainda sobre a direção de arte, o filme vai impor uma caracterização excepcional da favela onde vivia a família de Dona Lindu. A cena da enchente – comum nas regiões pouco abastadas da Grande São Paulo é um dos momentos de realidade mais belos do filme. Dura muito pouco, mas soma bastante. Perto do fim do filme, vemos um Luiz Inácio vivendo em uma residência que, apesar da humildade, estava longe de corresponder aos seus ganhos como operário e diretor do sindicato... para quem assistiu filmes como “ABC da Greve” e “Eles não usam black-tie”, a decoração da casa de Lula: com televisão e carro na garagem no último quinto do filme parece um escapismo. Que a vida de sindicalista lhe dá beneficies, todo mundo sabe. Mas, ao que nos consta, demora um pouco mais. Talvez, quem sabe, seja uma crítica velada de Fábio Barreto. Pode ser eu, o ingênuo, que não soube perceber que já no inicio da década de 1970, e não dez anos mais tarde como supunha, Lula já tivesse um padrão de vida maior que seus companheiros. É uma possibilidade...

A caracterização dos personagens é, de fato, ponto alto. O preparo dos atores foi excepcional. Glória Pires está formidável como Dona Lindu, e conduz o filme com maestria. Poderia, quem sabe [ mas ai, seria o meu filme sobre o Lula e não o filme de Barreto] ser menos politicamente correta. Em uma das cenas que julgo um exagero de estereótipos, por exemplo, há uma grande discussão a respeito da educação dos filhos. Dentro de uma tradição narrativa, pode parecer altamente piegas e repetitivo o debate entre o parente que quer os filhos freqüentem a escola e o outro que acha que devem trabalhar; mas de fato, essa tensão existiu na vida de Lula e foi decisiva em sua trajetória. Por mais piegas que seja, ocorreu! A cena, carregada de arquétipos, termina com um momento completamente irreal onde uma criança de menos de dez anos ameaça o próprio pai (bêbado e conhecido por ser violento com os filhos) para não agredir a mãe porque "homem não bate em mulher". Era o pequeno Lula, o predestinado (só se for). Não sei se essa cena de fato ocorreu. Me parece pouco provável. Se tiver ocorrido, eu teria tirado [ mais uma vez, é uma crítica insossa, pois seria meu filme e não o de Barreto] para não parecer bravata. Barreto teve coragem de tirar tantos momentos da vida de Lula, porque não tiraria esse? Bem, o filme trata de caracterizar Luis Inácio de forma muito realista: um homem com suas falhas, medos, inseguranças... com momentos de coragem e covardia. Por isso, essa cena é um arranhão no filme. Faz lembrar um pouco aquelas passagens bíblicas em que o jovem Jesus parece não ter a idade que tem. Bem, é o único momento. Não avaliemos o filme apenas por isso. Estávamos falando mesmo era de Dona Lindu. Pois bem, Dona Lindu não era tão ativista da educação escolar para suas filhas mulheres como foi para os homens. Isso não faria dela uma antagonista. Faria dela um ser mais complexo, uma mulher do seu tempo que... cheia de méritos, tinha suas falhas (uma falha que seria considerada acerto na década de 1950). Mas o filme, se apostou em um Lula mais humano, fez de Lindu um super humano! Mas sem traumas. O filme é sobre seu décimo-quarto filho... e a Lindu que aparece é a Lindu-mãe : aquela que ficou imortalizada na memória dos filhos. E não a Lindu-ser-humano, que certamente teria suas falhas (mas, ainda assim, seria uma mulher fantástica). Glória, como ia dizendo, foi fantástica... apesar dessa cena. Em vários momentos, reduz suas palavras ao mínimo. Interpreta apenas com o olhar, com a expressão corporal. Constrói uma personalidade coerente e de uma empatia assustadora. Se o filme é sobre o filho de Dona Lindu, é ao redor dela que se constroem as tramas.

O filme é sobre o amor de uma mãe para criar os filhos, apesar das adversidades.

Uma das cenas mais simples e bonitas do filme exprime todo argumento do filme: o jovem Luiz Inácio, então estagiário de torneiro mecânico, vai até um balde cheio de óleo e suja o próprio macacão. Não havia trabalhado naquele primeiro dia, mas apenas recebido instruções. Mas queria causar impressão na familia. Quando retorna para casa, ganha atenção da comunidade em que vive, mas principalmente de sua mãe que se entorpece de orgulho do próprio filho. Resolve fazer uma refeição para o mais jovem trabalhador da familia. É uma cena absolutamente formidável. Revela muitas coisas, sobretudo uma relação de valores que as vezes é muito difícil captar.

Rui Ricardo Dias como Luiz Inácio está surpreendentemente convincente. Trabalhou a própria voz e uma expressão corporal para aprimorar o personagem. Se o trabalho com a voz parece intermitente, ao menos, isso colabora para não deixá-la forçada. É bem convincente. Nas cenas finais, reparem, está consideravelmente mais gordo: um retrato próximo de seu biografado que, de fato, desenvolveu uma protuberante barriga depois que assumiu a presidência do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo. A história de sua seleção para o papel é um capítulo a parte. Ele fez teste de elenco para vários personagens masculinos coadjuvantes. Até que, por acaso, fez o teste para o protagonista e acabou convencendo o diretor. Em geral, ficções biográficas não se apegam tanto na proximidade física entre atores e seus biografados. Preferem apostar numa interpretação legitimada pelo público. As vezes, apostam em figuras que estejam em alta no estrelato – caso de Russel Crowe que interpretou o matemático John Nash Jr. em Uma mente brilhante (EUA, 2001). Ou, por vezes, apostam em semelhanças afetivas entre ator e personagem: como escolher Robin Williams para interpretar o médico Pach Adams – quando eu conheci o médico que inspirou o filme, há alguns anos atrás na Universidade de Brasília, fiquei absurdamente surpreso com a falta de semelhança física entre os dois. Sobre o jovem, e não mais desconhecido ator, a surpresa foi muito positiva. Primeiro porque seu talento foi capaz de fazer a equipe apostar nesse mineiro. E é sempre louvável quando coragem de uns combina-se com o talento de outros. Dias não traz nas costas o peso de uma série de personagens pelo qual será lembrado (e confundido). Problema que Glória teve de vencer: não bastava ser uma Dona Lindu convincente, era preciso fazer o público esquecer, pelo menos por duas horas, de todos os personagens que ela ganhou notoreidade. Naquele momento, Glória não era outra coisa a não ser Lindu. Dias não enfrentou esse desafio (realmente grande na carreira de qualquer ator), mas enfrentou justamente a falta de pré-conceitos. Contou com a coragem. E contou também com a sorte. Afinal, o ator Tay Lopes, escalado para o papel precisou desistir. A sorte vira para alguns. Dias e Luiz Inácio da Silva tem isso em comum. O segundo tem bem mais que o primeiro, pelo menos, até agora.

No mais, chama atenção tecnicamente a trilha-sonora. É majestosa. Acompanha com perfeição os momentos do filme, em um desenho de som absolutamente primoroso. O trabalho de Antônio Pinto com violinos e outros instrumentos de corda merece atenção especial. É graças a combinação de trilha que o filme pode apostar em caracterizações menos dramáticas, sem perder a carga emocional.

Falemos, finalmente, dos temas mais polêmicos. Pois o filme é bem mais protesto e contestação do que merecia ser. Antes de mais nada, trata-se da história de amor de uma mãe retirante, com uma dezena de filhos, na grandiosa e assustadora São Paulo da década de 1950. Superando dificuldades reais, apesar do analfabetismo e das necessidades básicas, ela coordena o amadurecimento de seus pequenos e pequenas com uma maestria impressionante. A sua falta de etiqueta é combinada com uma astúcia que em nada tem haver com uma educação escolar. Os filhos que sobreviveram (há referências sutis a mortalidade infantil que levou vários irmãos de Luiz Inácio) foram criados por uma mãe exigente, amorosa e benevolente. O filme dá especial atenção a um dos mais novos filhos de Dona Lindu. Mas parece mesmo mais um recorte narrativo do que uma sugestão que houvesse um tratamento diferenciado entre os dois (saber construir essa idéia é um grande mérito do roteiro). Lula, esse filho que o filme vai dar especial atenção, é caracterizado por ser mais inteligente, por ter uma capacidade comunicativa grande (afinal, todos querem que ele entre no sindicato por acharem que ele leva jeito para coisa... menos ele) mas por ser emocionalmente fraco, hesitante nas suas decisões e, pasmem, por ser excessivamente tolerante com algumas questões... o Luiz Inácio, personagem, demora para radicalizar-se e, ainda assim, o faz com ponderações. Que Luiz Inácio seria esse? Aquele que conhecemos entre 1979-1989 ou aquele que venceu as eleições de 2002? Talvez o Barreto esteja querendo dizer que ele sempre foi o mesmo – nem tão radical quanto pareceu à classe média durante a década de 1980, nem tão moderado quanto parece atualmente. Ou, talvez, numa licença poética, Barreto esteja falando mais de um Lula de cinqüenta e tantos anos (na verdade, ele já é sexagenário) do que o Lula de trinta e cinco anos. Quem sabe...

De qualquer forma, até os minutos finais do filme, a história de vida da família Silva é uma trajetória de sucesso, apesar de cicatrizes muito dolorosas (como a morte de entes muito queridos). Mas não há nada de macrosocial. O filme é mais belo por isso: retrata um sistema de valores próprios daquela comunidade. Quem ficaria feliz por ter sido empregado em uma fábrica e saber que trabalhará mais de doze horas por dia e terá os salários arrochados pela inflação galopante? O jovem Luis Inácio, sabendo da exclusão social que estava submetido pela deficiência física, vibra no dia da sua contratação e leva o público a sensibilizar-se com ele. É tão pouco. Mas, ao mesmo tempo, é tanto. Minutos finais do último rolo e Barreto resolve explorar a projeção do jovem presidente do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo como absolutamente casual. Fruto de coincidências políticas e acasos. Talvez, o sucesso seja mesmo isso – já mostra a seleção de Dias para o papel. De desconhecido metalúrgico no ABC, pessoa invisível no meio de milhões de trabalhadores, torna-se rapidamente a figura política de maior capacidade de mobilização social no país – ainda que não se dê conta disso. E...e... e o filme termina aqui. Pronto! E foi excelente essa escolha de Barreto. O filme não faz menções ao PT ou a sua carreira como político em espaços de negociação e barganha. O argumento do filme não é esse, e Fábio Barreto soube respeitá-lo muito bem: não caiu na tentação de querer falar de tudo. Se o projeto era falar da relação entre mãe e filho, o filme termina na morte de Dona Lindu. Ela simboliza o momento em que essa história deve ter fim[1]. A partir dali, outra história haverá. Um Luis Inácio público, e não mais intimo (como que o filme pretendeu). Se sentirem falta dessa parte, por favor, escrevam o roteiro e façam o projeto. Pode ser que o resultado seja excepcional. Mas acho incabíveis as críticas a respeito daquilo que o filme não disse. O que o filme não disse, realmente não fazia parte desse filme. Talvez, falam parte de outro filme. Há tantos projetos cinematográficos que querem falar de tantas coisas e acabam se perdendo. Não falando de nada com profundidade merecida. Esse projeto, com todas as críticas justas que devem ser feitas, não sofre desse mal. Aquele não é o Lula que conhecemos. Aquele é um Lula personagem. Irreal para falar algo sobre o real. Mas, não se esqueçam, irreal. Sobretudo, encaremos aquele Luiz Inácio feito por Fábio Barreto como um prólogo desse que, hoje, caminha para seus últimos meses na presidência da República.

Polêmica forte, na verdade, ocorre fora dos 24 quadros por segundo em que a obra se materializa como projeto cultural, e não como produto cientifico- vou insistir nesse ponto, apesar de ter certeza que serei vencido pela expectativa da maioria dos expectadores. Ponto que gerou debates, e ainda gera, é a possível utilização de dinheiro público para custear o filme. Se isso tivesse ocorrido, não seria nenhuma ilegalidade. A produção cinematográfica brasileira é custeada por incentivos estatais através de editais e leis de incentivo. Isso é uma realidade comum em quase todos os países do mundo. Excetuando-se Estados Unidos, França e Índia : únicas praças cinematográficas em que a produção de cinema é uma atividade rentável. Ou seja, somente nesses três países, a situação em que a soma de todas as receitas ganhas no cinema é maior que a soma de todas as despezas. Ainda assim, em outros momentos de sua história, esses países subsidiaram, e muito, a produção e distribuição de seus filmes[2]. Por isso, o apoio estatal é essencial em qualquer lugar que se faça cinema. Tentamos viver sem esse apoio no inicio da década de 1990 e o resultado foi muito ruim. Isso não significa que cinema não é algo para a iniciativa privada. É. Mas é preciso que haja uma combinação de interesses. É muito complicado convencer uma empresa a aplicar milhões de reais em um filme de retorno incerto. A iniciativa provada quer lucro, realizadores querem fazer filmes... e o Estado acaba participando como fiador. Pois bem, eu não conheço – deve haver, mas confesso minha ignorância – nenhum filme de longa-metragem nacional com distribuição comercial que não tenha utilizado de editais públicos para custear parte do orçamento. Os editais dificilmente conseguem cobrir 100%. Mas deixam “aquilo que sobra” dentro de uma margem em que a iniciativa privada sente-se segura em participar. Essa é uma prática generalizada. Para se ter uma idéia, mesmo os filmes da produtora GLOBO FILMES (que são retorno comercial certo) participam desses editais e, dessa forma, abatem parte considerável de seus custos. Quando soube que esse filme estava sendo feito, nem mesmo questionei se estaria ou não utilizando-se de dinheiro público. Conclui, naturalmente, que estava. E julguei que, independente dos méritos artísticos do filme, seria uma enorme polêmica fazê-lo. Não consegui julgar se certo ou errado. Afinal, como defensor de uma liberdade amoral (e não imoral), teria de apoiar uma iniciativa de fazer qualquer filme. Mesmo um filme sobre o Presidente da República que está no poder. Mas, confesso, a situação é altamente desconfortável.

Os editais públicos que contemplam esses projetos podem ser alvo de questionamento. Mas estão cada vez mais austeros, ainda que carecem de alguns aperfeiçoamentos. De qualquer forma, Fábio Barreto tem um nome forte na tradição do cinema no Brasil. Seria capaz de propor um projeto altamente exemplar e sem cometer falhas que poderiam desqualificá-lo (como erros no orçamento ou projeções irreais de realização). Também possui um excelente currículo, o que numa analise de experiência profissional – que conta pontos em muitos desses editais – poderia ajudá-lo. Enfim, um avaliador (mesmo aquele absolutamente criterioso e justo) provavelmente estaria diante de uma situação altamente desconfortável: uma vez que o projeto teria sido aprovado em todas as etapas eliminatórias, só restaria desqualificá-lo por conta da temática – situação em que nenhuma banca de seleção quer passar, ainda mais tendo de fazer com um filme de um diretor já indicado ao Oscar. Lembro de comentar com alguns amigos durante o último ano a provável cadeia de constrangimentos que esse projeto deve ter causado – sem razões técnicas para eliminá-lo, só restaria fazê-lo por questões políticas.

Mas isso nunca ocorreu. A situação que imaginei no parágrafo anterior é completamente fictícia, apesar de verossímil. A produção do filme, sabendo dessa polêmica, fez uma aposta arriscada. Decidiu fazer um longa-metragem sem apoio financeiro do Estado. Arrecadou 16 milhões de reais. Para se ter uma idéia, o maior faturamento do cinema nacional não chega a 10 milhões de reais. Antes do filme começar, somos apresentados a dezenas de marcas de empresa que decidiram patrocinar. Um risco financeiro dessa magnitude deve ser compartilhado, obviamente. Assim, fez-se o primeiro (pelo menos do meu conhecimento) longa-metragem brasileiro de distribuição comercial sem incentivos do Estado. Isso não exclui algumas críticas, por favor. Mas, justiça seja feita, os livra de uma série de questionamentos éticos que estão sendo submetidos (dos quais, alguns críticos, convenientemente, estão sendo surdos). Podemos, por exemplo, ponderar as razões que levaram tantas empresas a colocarem dinheiro nessa produção. Mas sem fazer demagogias absurdas – há sempre interesses políticos nas ações de patrocínio. Quando empresas nos Estados Unidos ou na França entram como patrocinadores de produções culturais, possuem interesses estratégicos em vincular suas marcas ao produto. Não é diferente no caso brasileiro. Existem razões para cada uma delas terem aceitado tal investimento. Quem não quer uma aproximação de imagem com um presidente que possui uma popularidade como a que possui Lula? As vezes, as aproximações tem interesses bem questionáveis – como a vinculação do empresário Eike Batista no projeto (justamente quando parece requerer o apoio do Palácio do Planalto para executar seus interesses junto a Vale). Essa vinculação de política e atividade cinematográfica é impossível de não ser feita, creio eu. Pode ser atenuada. Ou pode ser intensificada até níveis imorais. Mas acho difícil que não seja feita.

Assim, excluindo a possibilidade de desvios de verbas públicas e de tráfico de influência – o que apesar da possibilidade, não deve ser tratado como afirmação; a produção de Lula, o filho do Brasil esquivou-se de um dilema ético com muito malabarismo, habilidade e competência. As criticas, então, que caiam sobre a iniciativa privada.

Encerrando essa questão, o diretor Fábio Barreto foi questionado por um jornalista há algumas semanas atrás sobre o tema. Naturalmente, isso foi antes de ter sofrido o acidente de automóvel que o deixou em coma. O jornalista, na verdade, fez uma afirmação, não uma pergunta. Disse que se o presidente Lula tivesse ética só permitiria o lançamento desse filme em 2011. Incrível, não? Felizmente passamos da fase do regime militar em que o mandatário do executivo poderia interferir em assuntos de caráter não-público. O presidente não tem tal autoridade. Não decide por tais assuntos. Mesmo que o filme tivesse usado de incentivos públicos, o que nem ao menos ocorreu. Fábio Barreto disse-lhe isso. Diz que a decisão foi dele, e que não haveria maior cabimento perguntar ao presidente se haveria sua permissão. Mais uma vez, ainda bem que o sistema político nosso permite uma democracia que possa ser crítica ou favorável espontaneamente, sem pedir permissão. Na visão dele e de sua produtora, o lançamento do filme nesse momento, inicio de 2010 se aproveita da alta popularidade do Presidente para garantir bilheteria (numa analise bem amoral, seria o mesmo que lançar um filme para o público infanto-juvenil na época de férias... mas o mundo é mais complexo do que parece). Barreto defende que é ele que está se aproveitando da popularidade do Presidente para lançar o filme, e não o contrário. Questionável, mas faz sentido. Dada a instabilidade do mercado cinematográfico, é bem mais provável que seja Fábio Barreto que esteja se aproveitando... fazer um filme sobre um presidente popular e lançá-lo ainda na vigência de seu mandato é garantia de sucesso comercial. Para o presidente Lula, o filme pouco deve alterar sua popularidade – afinal, se os números de pesquisa forem realmente corretos, aqueles que não aprovam seu governo possuem uma opinião cristalizada e não irão mudar de idéia por conta do filme.

E sobre a possibilidade de que o filme seja usado como peça eleitoral? Se não diretamente, ao menos indiretamente? Existe essa possibilidade, é claro. E os agentes publicitários do Partido dos Trabalhadores devem buscar usar essa ferramenta, naturalmente. Não sei como, mas acho que veremos em 2010 esse filme ser usado de muitas formas. Mas também vimos nas eleições de 2002 e 2006 que a popularidade do presidente não é facilmente transferível. Se é ingênuo pensar que o filme não será tratado como peça publicitária (porque em época de eleição tudo vira material publicitário, até aquilo que nunca teve tal finalidade); é igualmente ingênua a posição daqueles que acham que o filme possui um potencial de mobilização de almas. Já superamos a década de 1930 em que Leni Riefesthein realizou o clássico nazista Triumfo da Vontade (ALE, 1934). Por favor, não quero fazer comparações ideológicas desses dois filmes. São diametralmente opostos. Estou apenas destacando que os críticos estão supervalorizando demais o projeto de Fábio Barreto. Atribuindo a ele poderes irreais. Poderes bem menores, por exemplo, do que fazer edições tendenciosas em debates políticos ou colocar em pauta de debates o passado intimo-afetivo dos candidatos. Isso sim, pelo que vimos, é o que influência decisivamente o público na hora do voto.

Não sei se estava nos plano do diretor Fábio Barreto. Não sei se ele imaginava essa polêmica toda. Ou se acreditava, ingenuamente, que a opção pelo não-financiamento do Estado poderia poupá-lo de tal. Não sei. Mas o que os críticos estão conseguindo (e pasmem, já havia laudas e laudas de criticas antes mesmo que o projeto estivesse pronto) é tornar um filme que era apenas “bom” ser tão debatido quanto uma obra “genial”. As pessoas estão indo ao cinema para ver esse filme polêmico – porque a polêmica, em uma síntese bem típica de Nelson Rodrigues, sempre radicaliza e atrai. O filme está mais comentado que muitos outros projetos que, esteticamente melhores, estão passando o verão ofuscados. E quem está produzindo isso são os próprios críticos, gerando uma áurea de atração e repulsa que, mesmo que gere opiniões contrárias, levará inevitavelmente todos ao cinema. E vai estimular no público opiniões polarizadas: perfeito/horrível... justamente para um filme que parece apostar num discurso ameno.

Por isso, preferi escrever antes sobre o filme, e depois sobre a polêmica. Afinal, pouco se disse do que acontece nos 24 quadros por segundo. E minha sugestão continua sendo que as pessoas assistam e tirem suas próprias conclusões – positivas ou negativas – mas que não sejam ancoradas naquilo que foi dito por pessoas que já tinham opiniões formadas sobre o filme antes mesmo de assistirem.

Retornando ao que interessa: o filme. Tenho uma forte crítica a fazer. O título do filme. Em um projeto que passa 120 minutos tentando não cair em soluções fáceis e tratamentos piegas para temas tão dramáticos, existe algum “escorrego” maior que esse título? Junto com a cena em que o menino Lula enfrenta o próprio pai, o título do filme parecem ser indícios santificantes do personagem. São cicatrizes em um trabalho tão bem feito em não torná-lo divino, e sim, humano. Mudaria o título. Pensei em várias outras possibilidades. Nenhuma me convenceu, mas na minha opinião, todas eram melhores do que Lula, o filho do Brasil. Mas ai, volto a fazer uma auto-crítica: esse comentário é fruto daquilo que eu queria como filme para o Lula. É preciso entender o que o filme pretende.

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