domingo, 28 de março de 2010

A prática cultural do Boi Bumbá na cidade de Belém (segunda parte)

Autor: José do Espírito Santo Dias Junior (Historiador)

(continuação)

Com o florescer da década de cinquenta o folguedo atravessou novas transformações. As exibições começaram a mostrar um carater teatral introduzindo novos personagens, novo figurino e a utilização de cenários específicos, os terreiros, currais e teatros. É possível que o caráter repressivo da polícia, somado à condição de ser o boi um “auto popular” manifesto principalmente pelas “classes perigosas” (CHALHOUB, 1996:20-29), tenha contribuido para uma mudança na estética do “brinquedo”. Seus organizadores preocupados em ofuscar os aspectos negativos ligados à capoeiragem e às brigas constantes do início do século, começaram a passar outra imagem do folguedo. A brincadeira foi se disciplinando e passou a adotar um novo estilo de comportamento coletivo, agora identificado com as manifestações folclóricas.
As mudanças deste período têm relação com a atenção que os estudiosos do folclore passaram a dar às expressões culturais manifestas em todas as partes do Brasil. Assim, os folguedos paraenses passaram a ser objeto de estudo de folcloristas interessados em fazer pesquisas de campo, coleta de dados, catalogar os estilos, fazer levantamentos etnográficos e buscar o histórico das manifestações. Os estudos concentrados na Comissão de Folclore do Pará demonstram bem a preocupação dos intelectuais nela presentes que já admitiam a necessidade de um envolvimento maior da sociedade para se preservar os folguedos juninos em nossa cidade, uma vez que estavam “caindo no desuso e extinção, devido as interferências modernistas” (MENEZES, 1972:29) e ao legado violento que a brincadeira do boi bumba deixara em décadas anteriores.
Com o I Congresso Brasileiro de Folclore ocorrido no Rio de Janeiro em 1951 e com as discussões feitas a respeito das práticas culturais realizadas em todo o país, a partir do final da década de quarenta, um outro olhar foi dado aos folguedos juninos, as resoluções do encontro previam um maior ajustamento das tradições populares espalhadas pelo Brasil às políticas públicas de preservação e incentivo da cultura popular.
Os folcloristas interferiam nas manifestações dando sugestões de apresentação, noções de teatro e do prório conceito de folclore. Os antigos folguedos juninos passaram a ser chamados de “tradições folclóricas”, tornando-se a partir deste momento, manifestações emblemáticas da cultura popular e da identidade regional, saindo do domínio exclusivo das classes populares, passando a fazer parte também da tutela de estudiosos e eruditos.
É neste contexto que se verifica a aproximação do poder público às manifestações folclóricas em Belém através de políticas de subvenção e da promoção de eventos oficiais que congregaram os diversos folguedos existentes na cidade. Foram criados então os “Festivais” e “Concursos” oficiais de folguedos juninos organizados pelo departamento de Cultura e Turismo do Município de Belém (Detur), muito disputados entre as décadas de 1960 e 1980. A intervenção do poder público alterou a forma como os produtores culturais organizavam suas “brincadeiras”, pois a partir do momento em que os orgãos oficiais passaram a interferir diretamente, distribuindo verbas, definindo o calendário das apresentações e condicionando as exibições aos eventos oficiais, os folguedos ficaram de certa forma atrelados às políticas culturais desenvolvidas pelo Estado, tornando-se manifestações populares dependentes das políticas oficiais. Era comum nos jornais da cidade reclamações dos produtores culturais a respeito das parcas verbas dedicadas à cultura popular, o depoimento de Mestre Setenta (4) elucida bem está dependência:

A prefeitura engana a gente com uma bagatela. Este ano, dos gastos que prestei (...) foram 28 mil cruzeiros, isto sem contar as quinquilharias que a gente vai comprando sem contar, linha, armarinhos, fitas. Todo este gasto eu faço com a ajuda do povo, e com salário de meu próprio bolso. Este ano, para todo este gasto, a Prefeitura deu 18 mil cruzeiros. Pelo menos agora a Prefeitura até que dá uma certa ajuda, mas teve prefeito que nem olhava para o folclore - e mesmo assim o Tira Fama nunca deixou de sair. (A PROVINCIA DO PARÁ, 21/06/1981: 01).

Este condicionamento institucional apesar de interferir na preparação dos folguedos e criar certa dependência não encerrou o carater espontâneo e autônomo dos brincantes dos bumbas que continuaram fazendo suas promoções e cotizações para “botar o boi na rua”, como nos conta Mestre Setenta:

Nos primeiros anos de saída do bumba, seus componentes estavam mais motivados. Compravam até suas próprias vestimentas. Nos dois últimos anos, as coisas mudaram completamente por inúmeras razões. E agora ninguém sai num boi bumba se o seu proprietário não der toda a indumentária. E vestir 49 e 70 ou mais pessoas em nossos dias não é brincadeira, não. Não fosse a ajuda de particulares e de algumas entidades há muito que a figura do boi bumba já teria desaparecido em Belém. (O JORNAL, 15/07/1973: 03)

As condições colocadas para a realização do espetáculo do bumba, interferiram decisivamente na maneira com que seus organizadores moldaram o folguedo a partir de meados do século, alterando pequenos entrechos da peça, substituindo, por exemplo, a “matança do boi” pela “ferração”, que apesar de possibilitar uma interpretação diferenciada do folguedo, ainda procurou manter traços das expressões tradicionais em representações semelhantes às exibições antigas.
As diversas leituras do bumba produziram discursos, algumas vezes auto sugestivos de seus produtores culturais que clamavam, por exemplo, a originalidade do auto popular, atribuida aos próprios “botadores” mais antigos. Estes acreditavam que seus bois eram “folguedos tradicionais” e representavam os “antigos bois de rua de Belém”.
Mestre Setenta costumava dizer que “os bois de hoje são democrátas” (O LIBERAL,29/06/85:18) explicando que permitiam uma série de deturpações ao folguedo. As razões para sua declaração estariam nas inovações permitidas pelos produtores culturais mais jovens que acrescentavam novos elementos a estética do folguedo, alterando assim sua expressão original. O termo “democratas” estaria provavelmente relacionado a uma permissividade transgressora da tradição, que alteraria os pressupostos e o propósito do folclore regional. Com essas declarações Mestre Setenta demonstrava de forma rígida e exasperada a maneira como via as trasnformações nos folguedos juninos estendendo sua crítica a outras expressões folclóricas, modificadas pelas inovações. É o que nos mostra seu depoimento:

Dizem por ai que tudo é folclore e o que eu canso de dizer a todo mundo é que carnaval não é folclore, é uma consequência. A quadrilha também não é, é consequência. A única coisa da Quadra Junina que é folclore pra mim, é boi e pássaro, mas que já está ficando muito modificado. Quando cheguei aqui, (...) tinha muitos bois e não se via o que está se vendo agora, parecendo carnaval. Outra coisa que o pássaro carrega é o balé. Precisa explicar muito bem, que balé é cultura, é teatro, e isso nunca houve em pássaro, de maneira nenhuma. Eu já vi umas meninas sub-nuas, tipo pessoal do Chacrinha... então querem anarquizar! (SEMEC, 1986:4)

Suas declarações sugerem que havia uma distinção entre algumas expressão artistica da quadra junina que, na sua opinião, eram consideradas folclóricas, por identificarem-se com aspectos tradicionais; e outras identificadas com o conceito de cultura, por permitirem certas variações. As classificações dadas por Mestre Setenta para os tipos de manifestações demonstram que ele atribuia sentidos aos conceitos de “folclore” e “cultura”, que na sua cabeça apresentavam significados distitintos. Talvez esta compreensão tenha sido reflexo dos contatos entre Setenta e estudiosos do folclore em Belém.

Notas:

4. Elias Ribeiro da Silva (1915-1997): Produtor cultural, dono e amo do boi “Tira Fama”.

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