domingo, 28 de março de 2010

A prática cultural do Boi Bumbá na cidade de Belém (parte final)

Autor: José do Espírito Santo Dias Junior (Historiador)

Foi natural em meados do século XX os debates acerca do estatuto dos estudos do folclore e da cultura popular como campos de investigação similares, apesar das divergências apontadas por uma ou outra corrente que duvidavam de determinados aspectos normativos e de sistematização. Para alguns o folclore estaria relacionado aos saberes populares enquanto a cultura popular estaria ligada aos conceitos acadêmicos. Embora essas conceituações possam ter variações e definições mais complexas destacadas nas pesquisas de antropólogos, literatos, linguistas, historiadores, etc., elas se plasmaram a revelia dos canones eruditos quando ganharam sentidos próprios na compreensão dos produtores culturais dos folguedos juninos em Belém. Resultado da “circularidade cultural” (GINZBURG, 2006: 11-30) manifesta nas expressões folclóricas.
Mestre Fabico (5) por sua vez, referenda que seu boi “não tem pavulagem” por ser “um boi de rua” (BALERA, 29/09/2008) que pratica a cultura popular sem o cerimonial e a estrutura que cerca os movimentos recentes de bumba em Belém. Na sua avaliação o seu boi “Flor de Todo Ano”, é um boi “popular” que se manifesta sem restrições de público ou lugar, podemos perceber este discurso presente em uma de suas toadas:

Vim trazer Flor Todo Ano, para o povo apreciar,
ele é um boi de rua, dança em qualquer lugar,
ele é um boi de bamba é chamado para o interior,
brinca em qualquer cidade porque tem muito valor,
não é boi de Pindaré, nem é boi do Axixá,
ele não tem Pavulagem, nem é boi de Cametá
não é boi do Maranhão e nem é boi do Mangangá
ele é um boi paraense que nasceu lá no Guamá.(BALERA,17/10/2008)

Ser diferente era um dos motes inspiradores das toadas cantadas pelos amos de boi em Belém, que num discurso consensual elegiam-se como os “guardiões” da cultura originária do boi bumbá. A toada acima demonstra certa provocação ao grupo “Arraial do Pavulagem”, que segundo Mestre Fabico “é um boi bacana, mas não é igual aos bois tradicionais” (BALERA,29/09/2008). A tradicionalidade estaria identificada por determinadas caracteristicas singulares na estética e na performace de seu boi, que ainda fazia o esforço de manter costumes do passado ao sair nas ruas em batucada com seu grupo de barriqueiros, apresentando a comédia dramatizada com personagens antigos, mantendo alguns rituais resistentes às inovações culturais sofridas pelo folguedo nas ultimas décadas.
Nos ultimos trinta anos a comédia do boi foi ganhando outras interpretações que dinamizaram a cultura popular em Belém. Foi na década de oitenta que novas formas de apresentação da peça misturaram-se às versões antigas. As variações sofridas foram geradoras de significativas mudanças nos sentidos da manifestação folclórica, pois a territorialidade do boi, tradicionalmente identificada com as periferias, estendeu-se a outros espaços de atuação no centro da cidade, teatros e praças passaram a ser utilizados pelos grupos folclóricos, onde um público diversificado começou a apreciar a brincadeira do bumba, que deixou de ser domínio exclusivo das classes populares residentes nos suburbios passando a atrair outros segmentos sociais. Um exemplo está nas expressões mais recentes que representam o boi em estilos e danças misturados a outras expressões folclóricas, promovendo uma síntese de diversas “brincadeiras” da região. É o caso do boi “Arraial do Pavulagem”, boi que ganhou amplitude na década de 1990, fazendo apresentações semanais, durante a quadra junina na Praça da República atraindo adeptos de outros segmentos sociais que costumeiramente não brincavam nem apreciavam o folguedo do boi.
Os vários significados estéticos geraram modelos bem distintos de representação do folguedo em Belém nos ultimos anos, sendo possível encontrar-se expressões tradicionais e, ao mesmo tempo, formas mistas e estilizadas. As primeiras organizadas por antigos mestres, remanescentes dos bumbas das primeiras décadas do século XX, que resistem às trasnformações do folguedo, realizando exibições suburbanas nas ruas e festas da periferia durante a quadra junina; e as segundas manifestas em eventos públicos de maior amplitude realizados em praças e teatros, contando com a presença de um público bastante diversificado e eclético.
Apesar de certa clivagem existente nos bumbás o locus de circulação dos diferentes estilos de boi se espraia por espaços comuns. Os eventos oficiais organizados pela Prefeitura Municipal e pelo Governo do Estado constituem-se em lugares de convergência entre as várias tradições folclóricas, pois grande parte dos folguedos juninos do Pará apresenta-se nos concursos e festas oficiais, proporcionando a reunião dos “folguedos tradicionais” com as expressões “estilizadas”, possibilitando a troca de experiências e de saberes desta antiga expressão popular.
É ancorada nessas variações de estilos e representações que a cultura do boi bumbá vem se mantendo em Belém, demonstrando o carater mutável do folguedo ao longo do século XX, mesmo quando reclamado por produtores culturais tradicionalistas que nas suas apreciações romanticas exaltavam o mito da “originalidade” e da imutabilidade folclórica. A cultura popular na sua ascepção dinâmica pode adaptar-se de acordo com as circunstâncias sociais e o contexto histórico, mantendo costumes e tradições simbólicas ancestrais, passadas de geração a geração, ao mesmo tempo em que se adequa as atualizações proporcionadas pela modernidade, num processo dialético de múltiplas facetas que reforçam a amplitude das experiências compartilhadas pelos indivíduos em determinado espaço e tempo.
Para concluir é importante considerar que há um número significativo de depoimentos e matérias de jornais disponiveis para pesquisas na área de folclore, música, teatro e cultura popular em geral, no acervo Vicente Salles, no Museu da Universidade Federal do Pará em Belém; na Biblioteca Pública do Estado do Pará; no Centro Cultural Mestre Setenta; além das entrevistas disponíveis no Museu da Arte e do Som do Centro Cultural Tancredo Neves em Belém. Todos de bom conteúdo para a construção e análises de pesquisas na área da História Cultural.

Notas:
5. João Fabiano Balera: Produtor cultural, amo e dono de boi bumba “Flor de Todo Ano”.


Bibliografia
BAKHITIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Brasilia, Hucitec/UNB, 2008.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore. São Paulo: Brasiliense, 2007
CRUZ, Ernesto. “Costumes e tradições – Festas de São João”. In: Belém: aspectos geo-sociais do Município. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944.
CHALHOUB, Sidney, Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo – Companhia das Letras, 2006.
MENEZES, Bruno. Boi Bumba: Auto popular. Belém. Editora H. Barra, 1972.
RIBEIRO, José Sampaio de Campos. Gostosa Belém de Outrora. Belém, Editora Universitária, 1965
SALLES, Vicente. O Negro na formação da sociedade paraense. Belém: Paka-Tatu, 2004.
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO E CULTURA. Cadernos de cultura: O Tira Fama, Elias Ribeiro da Silva (Seu Setenta). Belém, 1986.

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