quarta-feira, 26 de maio de 2010

Fim deste blog

Tendo em vista a ineficiencia deste blog para os fins que ele foi proposto, informo que este será desativado e ficarei administrando apenas o meu blog pessoal www.mimcomigomesmo.blogspot.com.
Abraços a todos e a todas!

quarta-feira, 7 de abril de 2010

CIDADE E MODERNIDADE: O RÁDIO PARAENSE DOS ANOS 30 EM QUESTÃO

Érito Vânio Bastos de Oliveira (Historiador)

A radiofonia tupiniquim ensaiou seus sons, vozes e chiados na década em que os modernos e tenentes, a sua maneira, ensaiavam rupturas e a sua afirmação nacional. Dessas fumaças de mudanças começaram a ser escutados os sons da modernidade, do progresso, da civilidade como educação e cultura, que por sua vez, se atrelavam às imagens de centros urbanos considerados modernos, remodelados e centros da locomotiva econômica do país. Desse modo, e não de outra forma, as primeiras estações de rádio do Brasil estavam na capital federal e na capital do café. Porém, duas cidades que também tiveram seus processos remodelação urbana que, porém, representavam economias que tinham perdido, por múltiplas circunstâncias, o seu dinamismo, estavam nas regiões nordeste e norte: Recife e Belém do Pará. Nessas duas cidades, respectivamente, nasceram duas sociedades radio- difusoras, o Rádio Clube de Pernambuco e o Rádio Clube do Pará.
Na Amazônia, a radiodifusão iniciou efetivamente as suas transmissões na ante-sala das disputas pelo poder entre as oligarquias e a Aliança Liberal, da crise mundial do capitalismo de 1929 e dos movimentos “revolucionários” que trariam Getúlio Vargas ao poder. Na realidade dos espaços administrativos regionais tomam destaque os tenentes e toda uma proposta moralizadora do serviço público e administrativo. No Estado do Pará, a figura de proeminência dessa nova realidade foi o tenente Magalhães Barata.
A emissora radiofônica da Amazônia, o Rádio Clube do Pará, iniciou as suas transmissões no dia 7 de setembro de1929, segundo foi noticiado pela coluna “radiotelephonia” do jornal A Folha do Norte. A emissora passou por várias transformações ou “melhoramentos”, mas, de um modo geral, ela era composta por um estúdio, a antena e a sua sede. Nesta sede, um espaço de destaque era o seu auditório.
Como a sua própria nomenclatura informava, tratava-se de um clube de associados que pagavam mensalidades e tinham acesso privativo à sede da emissora. Apenas em momentos excepcionais era franqueado a um público generalizado. Se apresentar como músico, cantor, humorista ou poeta servia para referendar status social e cultural além de reafirmar círculos de intelectuais. Outrossim, a freqüentação de um espaço como a sede da emissora PRAF, depois PRC-5, indicava que um dos seus aspectos para a percepção e sensibilidade dos freqüentadores era o de ser tanto um local que evocava modernidade como também o de prazer.
Por sua vez, se é verdade que, de um lado, os aspectos de lazer e divertimento estiveram associados ao funcionamento e aos espaços da emissora, sobretudo no que se referia ao seu auditório, por outro, o modelo principal perseguido pelos homens do rádio desse tempo no Pará foi, sem dúvida, o educacional, o ilustrado. Poetas, músicos, maestros, médicos, políticos, acadêmicos, professores ou especialistas em áreas do conhecimento proferiam palestras, conferências, rádio sketch, páginas literárias, comentários de livros e autores, aulas e consultas pelo rádio, programas celebrativos da memória de um importante artista patrício.
Se utilizando de alto-falantes em importantes espaços da cidade de Belém como as praças públicas, a emissora objetivava materializar e assumir o papel social e cultural que seria o de servir como meio de expansão da arte nacional, ensinando-a inclusive para as ”classes menos favorecidas”. Desse modo, os programas educativos e artísticos serviam ao propósito, digamos, em última instância, de “civilizar” os setores populares e promover a “moralização das classes laboriosas” (CHOAY, 1999: 104) no contexto novo de aproximação com esses grupos sociais a partir da política baratista.
Magalhães Barata e a intendência municipal nos primeiros anos da década de 30 procuraram efetivar uma nova urbanidade que se caracterizava tanto pela “moralização” dos espaços públicos através das “medidas de impacto” como pela aproximação com os setores populares e operários. A emissora vivenciou o cotidiano dessas transformações políticas, sociais, urbanas e estéticas, seja valorizando os espaços públicos através das irradiações de sua programação, simbolizando tanto progresso e modernidade técnica como cultural. Assim, por exemplo, No dia 19 de julho de 1931, a coluna “Radiotelephonia” do jornal A Folha do Norte estampava uma notícia com o título “inauguração de possante alto-falante” no qual os colunistas pintavam com as cores de um acontecimento a inauguração de um ”public speaker” na fachada lateral do Teatro da Paz (alto-falante possante) irradiando os programas da emissora na praça da República até áreas mais distantes. Os comerciantes de Belém foram incentivados a participar da propaganda pelo rádio devido a um “publico numerosissímo” que passou a ter acesso por conta do alto-falante. A participação da elite política e econômica com Barata e seus secretários, além de fazendeiros e a própria imprensa foi marcante e reveladora da integração, usos e representações da emissora por diversos grupos políticos e sociais, ao mesmo tempo em que, valorizava e ressignificava espaços públicos.
Outra importante preocupação tanto do governo de Barata como de alguns intelectuais paraenses como da própria emissora paraense foi chegar até a população do interior paraense, nas localidades e vilarejos. Com esse propósito, a emissora inaugurou em 1934 uma estação de ondas curtas passando a irradiar a sua programação para o interiorano. Nessa época, um dos fundadores do rádio paraense, Edgar Proença, batizou o prefixo famoso “A voz que fala e canta para a planície”.
Antes que a voz para a planície chegasse, inúmeros vilarejos e localidades mais distantes contavam como um dos meios de comunicação os diversos postos de linha telegráfica que passaram a ligar esses diversos espaços. O sociólogo Claude Lévi Strauss esteve na Amazônia fazendo uma pesquisa etnográfica, onde reconheceu de imediato, a necessidade de comunicação na região quando “De Urupá até o rio Madeira os postos de linha telegráfica são ligados a vilarejos de seringueiros que dão uma razão de ser ao povoamento esporádico das margens”. (LÉVI-STRAUSS, 1996 [1955]: 341)
Outro aspecto observado por Lévi Strauss nesses vilarejos e localidades da Amazônia que chamava a atenção era a precariedade de acesso às informações do que ocorria no mundo. A respeito disso, ele afirmou da importância dos “regatões” ou “mascates” que traziam além de remédios “velhas gazetas igualmente estragados pela umidade”. Nessa ocasião, o próprio estudioso francês experimentou a defasagem informativa ao afirmar que “um exemplar largado na cabana de um seringueiro informou-me, com quatro meses de atraso, dos acordos de Munique e da mobilização.” (LÉVI-STRAUSS: 342)
Cônscios dessas experiências e dificuldades, os homens da política como também, da radiodifusão no Pará passaram a instrumentalizar o rádio como meio de comunicação, informação e educativo. De tal modo, que além de levar as notícias se objetivava educar os ouvintes com aulas, por exemplo, sobre linguagem e o escrever e falar “correto”. Lévi Strauss afirmava que ao observar o modo de conversa das populações à dentro região amazônica, notava “deformações caboclas” com a “inversão dos fonemas: ‘percisa’ por precisa, ‘prefeitamente’ por perfeitamente...”. (LÉVI-STRAUSS: 342) Para os grupos intelectuais e políticos que tomavam corpo na emissora, o “broadcasting” serviria também para “civilizar” a linguagem, instruindo a melhor maneira de falar e se comunicar. Um dos colaboradores semanais da emissora paraense, Edgar Serra Freire, especialista em estudo da linguagem, proferiu um palestra pelo Rádio Clube do Pará no dia 7 de março de 1933, intitulada “a educação do povo pelo amor e uso consciente do idioma materno”.
Filha da sua época ou de épocas, a emissora cuja “voz fala e canta para a planície” experimentou, vivenciou, significou e simbolizou com a cidade de Belém múltiplas relações com os seus espaços e moradores. Sentiu necessidade de expandir seu espaço acústico para a “planície”, para o interior se tornando registro sensível na memória de gerações de populações amazônicas, se confundindo com as pessoas, os espaços, a cultura, os sonhos, o imaginário e a possibilidade do desenvolvimento. Assim, essas ondas sonoras do rádio contam capítulos importantes de múltiplas histórias desse extremo norte do país.

BIBLIOGRAFIA

CHARLOT, Monica e MARX, Roland. Londres, 1851-1901: a era vitoriana ou o triunfo as desigualdades. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, pp. 47-58
CHOAY, Françoise. “A natureza urbanizada: a invenção dos ‘espaços verdes’”. Projeto História, nº 18 (1999), pp. 103-106.
LÉVI-STRAUSS, Claude. “Amazônia” [1955]. In: Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 341-351.
MARX, Roland. “A grandiosidade britânica”. In: CHARLOT, Monica e MARX, Roland. Londres, 1851-1901: a era vitoriana ou o triunfo as desigualdades. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, pp. 21-29
MONDENARD, Anne de. “A emergência de um novo olhar sobre a cidade: as fotografias urbanas de 1870 a 1918”. Projeto História, nº 18 (1999), pp. 107-113.
RONCAYOLO, Marcel. “Transfigurações noturnas da cidade: o império das luzes artificiais”. Projeto História, nº 18 (1999), pp. 97-102.
SCHAFER, Raymond Murray. A afinação do mundo: Uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a
paisagem sonora. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

domingo, 28 de março de 2010

Lula: filho do Brasil

Autor: Gabriel F. Marinho (Cineasta e Historiador)


Fábio Barreto está diante de um desafio dos mais complicados. Chegamos a essa conclusão quando, diante de criticas justas, perguntamo-nos: “mas havia como fazer diferente”? É um desafio realizar uma narrativa cinematográfica de uma personalidade impressionantemente popular e com uma trajetória de vida que, de fato, é um drama digno de epopéias clássicas (quando comparamos, por exemplo, com o retorno de Ulysses). Ou, por vezes, parece mais próximo com narrativas de Jacob e Wilhem Griim – no caso, pensava mais nos contos de Cinderla. Por mais piegas que possa parecer, a vida de Luiz Inácio da Silva é quase uma perfeita síntese dessas histórias que, apesar de serem irreais, captam a imaginação ocidental em arquétipos e fábulas. A vida de Lula é inverossímil, apesar de real. E eis o desafio de Fábio Barreto: em um tempo em que somos muito críticos a histórias tão “absurdas e simplórias” – queremos personagens mais complexos, pessoas de “carne e osso” - fazer uma trajetória de vida que parece justamente negar essa complexidade toda. Parece.

Primeiro, a tentação de não investir em um drama lacrimoso quando a realidade já está lhe dando todos os elementos para isso. As vezes, não inserir no corte final, momentos excessivamente dramáticos, mesmo que eles tenham de fato ocorrido, para que o filme não pareça afirmar bravatas. E sim, há momentos da vida de Luis Inácio que não foram colocados no filme e, a única explicação que me parece provável, é essa: são momentos tão irreais, que não entraram para não serem tratados como “excessos”.

O segundo desafio é de ordem narrativa. O filme tem duas horas. A vida de Luis Inácio tem décadas. É preciso fazer elipses e condensar momentos. É algo inevitável. Não há espaço fílmico para tratar de alguns assuntos com a complexidade com que ocorreram. Será preciso resumir problemáticas em uma única cena. Inventar momentos que não ocorreram para representarem dois, três, quatro momentos que ocorreram de forma dispersa na vida do protagonista. É uma exigência do processo de adaptação. Não é uma fraude. Por favor, não pensem dessa forma. É preciso lembrar, de vez em quando, que se trata de um longa-metragem de ficção baseado na trajetória real de um homem. Existem exemplos complicados e exemplos simples. Uma das últimas cenas do filme ocorre dentro de uma igreja. É um momento importante da vida do então presidente do sindicato dos metalúrgicos de São Paulo. Aquele momento não ocorreu dentro da Igreja como sugere o filme. Mas foi a forma como Barreto encontrou para dizer que a Igreja Católica de São Bernardo estava envolvida com a greve.

O filme “Lula: o filho do Brasil” vai lidar com essas duas questões o tempo todo. Buscando soluções para contar alguns momentos. E inventando momentos que precisam para falarem de outros. É perceptível o esforço em conseguir ser um drama, mas não cair na armadilha dos estereótipos e soluções fáceis. Ainda que, muitas vezes, a realidade que pareça estereotipada, cheia de arquétipos. De ponto em ponto, o filme de Barreto acerta em 70% dos desafios. Uma média muito boa. Mas os 30% em que acaba se rendendo ao óbvio e piegas estão lá. Destacando-se dentro da história. Reparem, por exemplo, nos diálogos. Há momentos fantásticos, como a conversa entre o personagem Luiz Inácio da Silva e seu irmão, logo após uma revolta de trabalhadores de uma fábrica em 1963. Sem jargões marxistas – que eram bem mais comuns numa comunidade de intelectuais do que propriamente nos operários do ABC- e dotado de uma honestidade admirável, o diálogo é extremamente convincente. Reproduz idéias correntes sem cair em soluções fáceis. Uma hora mais de projeção, o filme vai escolher por soluções fáceis, como no primeiro diálogo amoroso entre os personagens de Luiz Inácio e Marisa Letícia. Ou em uma conversa que o protagonista possui com o chefe de sessão do DOPS. Esses exemplos ilustram bem a sensação que passamos com o filme... uma série de construções narrativas de qualidade, seguidas de momentos (raros, mas existentes) de linguagem bem televisiva. Na média, o filme é muito bom (até porque é um desafio não cair em tais tentações).

Alias, vários aspectos no filme seguem essa tendência: “muito bom, muito bom, muito bom, horrível, muito bom, muito bom, muito bom, horrível...”. Uma delas é a direção de arte. Calcanhar de Aquiles de muitos filmes nacionais, o trabalho desenvolvido nesse projeto é primoroso. E por ser primoroso, os escorregões (se é que são mesmo escorregões) são perceptíveis. A caracterização do nordeste brasileiro da década de 1940 é ótima. Ainda mais porque em algumas regiões pouca coisa mudou. As personagens de Glória Pires e Milhomem Cortez estão primorosamente bem caracterizados... eis então que, aparece uma amante prenha com traços faciais tão bem acabados que parecem ter saído de uma clínica de estética - em contraste com a dureza do sertão nordestino que envelhece qualquer jovem. Também causa estranheza o excesso de roupas na caracterização das crianças no nordeste. Para quem já esteve nessas regiões, sabe... meninos costumam andar nus, com pés descalços (assistam Garapa de José Padilha). Ainda sobre a direção de arte, o filme vai impor uma caracterização excepcional da favela onde vivia a família de Dona Lindu. A cena da enchente – comum nas regiões pouco abastadas da Grande São Paulo é um dos momentos de realidade mais belos do filme. Dura muito pouco, mas soma bastante. Perto do fim do filme, vemos um Luiz Inácio vivendo em uma residência que, apesar da humildade, estava longe de corresponder aos seus ganhos como operário e diretor do sindicato... para quem assistiu filmes como “ABC da Greve” e “Eles não usam black-tie”, a decoração da casa de Lula: com televisão e carro na garagem no último quinto do filme parece um escapismo. Que a vida de sindicalista lhe dá beneficies, todo mundo sabe. Mas, ao que nos consta, demora um pouco mais. Talvez, quem sabe, seja uma crítica velada de Fábio Barreto. Pode ser eu, o ingênuo, que não soube perceber que já no inicio da década de 1970, e não dez anos mais tarde como supunha, Lula já tivesse um padrão de vida maior que seus companheiros. É uma possibilidade...

A caracterização dos personagens é, de fato, ponto alto. O preparo dos atores foi excepcional. Glória Pires está formidável como Dona Lindu, e conduz o filme com maestria. Poderia, quem sabe [ mas ai, seria o meu filme sobre o Lula e não o filme de Barreto] ser menos politicamente correta. Em uma das cenas que julgo um exagero de estereótipos, por exemplo, há uma grande discussão a respeito da educação dos filhos. Dentro de uma tradição narrativa, pode parecer altamente piegas e repetitivo o debate entre o parente que quer os filhos freqüentem a escola e o outro que acha que devem trabalhar; mas de fato, essa tensão existiu na vida de Lula e foi decisiva em sua trajetória. Por mais piegas que seja, ocorreu! A cena, carregada de arquétipos, termina com um momento completamente irreal onde uma criança de menos de dez anos ameaça o próprio pai (bêbado e conhecido por ser violento com os filhos) para não agredir a mãe porque "homem não bate em mulher". Era o pequeno Lula, o predestinado (só se for). Não sei se essa cena de fato ocorreu. Me parece pouco provável. Se tiver ocorrido, eu teria tirado [ mais uma vez, é uma crítica insossa, pois seria meu filme e não o de Barreto] para não parecer bravata. Barreto teve coragem de tirar tantos momentos da vida de Lula, porque não tiraria esse? Bem, o filme trata de caracterizar Luis Inácio de forma muito realista: um homem com suas falhas, medos, inseguranças... com momentos de coragem e covardia. Por isso, essa cena é um arranhão no filme. Faz lembrar um pouco aquelas passagens bíblicas em que o jovem Jesus parece não ter a idade que tem. Bem, é o único momento. Não avaliemos o filme apenas por isso. Estávamos falando mesmo era de Dona Lindu. Pois bem, Dona Lindu não era tão ativista da educação escolar para suas filhas mulheres como foi para os homens. Isso não faria dela uma antagonista. Faria dela um ser mais complexo, uma mulher do seu tempo que... cheia de méritos, tinha suas falhas (uma falha que seria considerada acerto na década de 1950). Mas o filme, se apostou em um Lula mais humano, fez de Lindu um super humano! Mas sem traumas. O filme é sobre seu décimo-quarto filho... e a Lindu que aparece é a Lindu-mãe : aquela que ficou imortalizada na memória dos filhos. E não a Lindu-ser-humano, que certamente teria suas falhas (mas, ainda assim, seria uma mulher fantástica). Glória, como ia dizendo, foi fantástica... apesar dessa cena. Em vários momentos, reduz suas palavras ao mínimo. Interpreta apenas com o olhar, com a expressão corporal. Constrói uma personalidade coerente e de uma empatia assustadora. Se o filme é sobre o filho de Dona Lindu, é ao redor dela que se constroem as tramas.

O filme é sobre o amor de uma mãe para criar os filhos, apesar das adversidades.

Uma das cenas mais simples e bonitas do filme exprime todo argumento do filme: o jovem Luiz Inácio, então estagiário de torneiro mecânico, vai até um balde cheio de óleo e suja o próprio macacão. Não havia trabalhado naquele primeiro dia, mas apenas recebido instruções. Mas queria causar impressão na familia. Quando retorna para casa, ganha atenção da comunidade em que vive, mas principalmente de sua mãe que se entorpece de orgulho do próprio filho. Resolve fazer uma refeição para o mais jovem trabalhador da familia. É uma cena absolutamente formidável. Revela muitas coisas, sobretudo uma relação de valores que as vezes é muito difícil captar.

Rui Ricardo Dias como Luiz Inácio está surpreendentemente convincente. Trabalhou a própria voz e uma expressão corporal para aprimorar o personagem. Se o trabalho com a voz parece intermitente, ao menos, isso colabora para não deixá-la forçada. É bem convincente. Nas cenas finais, reparem, está consideravelmente mais gordo: um retrato próximo de seu biografado que, de fato, desenvolveu uma protuberante barriga depois que assumiu a presidência do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo. A história de sua seleção para o papel é um capítulo a parte. Ele fez teste de elenco para vários personagens masculinos coadjuvantes. Até que, por acaso, fez o teste para o protagonista e acabou convencendo o diretor. Em geral, ficções biográficas não se apegam tanto na proximidade física entre atores e seus biografados. Preferem apostar numa interpretação legitimada pelo público. As vezes, apostam em figuras que estejam em alta no estrelato – caso de Russel Crowe que interpretou o matemático John Nash Jr. em Uma mente brilhante (EUA, 2001). Ou, por vezes, apostam em semelhanças afetivas entre ator e personagem: como escolher Robin Williams para interpretar o médico Pach Adams – quando eu conheci o médico que inspirou o filme, há alguns anos atrás na Universidade de Brasília, fiquei absurdamente surpreso com a falta de semelhança física entre os dois. Sobre o jovem, e não mais desconhecido ator, a surpresa foi muito positiva. Primeiro porque seu talento foi capaz de fazer a equipe apostar nesse mineiro. E é sempre louvável quando coragem de uns combina-se com o talento de outros. Dias não traz nas costas o peso de uma série de personagens pelo qual será lembrado (e confundido). Problema que Glória teve de vencer: não bastava ser uma Dona Lindu convincente, era preciso fazer o público esquecer, pelo menos por duas horas, de todos os personagens que ela ganhou notoreidade. Naquele momento, Glória não era outra coisa a não ser Lindu. Dias não enfrentou esse desafio (realmente grande na carreira de qualquer ator), mas enfrentou justamente a falta de pré-conceitos. Contou com a coragem. E contou também com a sorte. Afinal, o ator Tay Lopes, escalado para o papel precisou desistir. A sorte vira para alguns. Dias e Luiz Inácio da Silva tem isso em comum. O segundo tem bem mais que o primeiro, pelo menos, até agora.

No mais, chama atenção tecnicamente a trilha-sonora. É majestosa. Acompanha com perfeição os momentos do filme, em um desenho de som absolutamente primoroso. O trabalho de Antônio Pinto com violinos e outros instrumentos de corda merece atenção especial. É graças a combinação de trilha que o filme pode apostar em caracterizações menos dramáticas, sem perder a carga emocional.

Falemos, finalmente, dos temas mais polêmicos. Pois o filme é bem mais protesto e contestação do que merecia ser. Antes de mais nada, trata-se da história de amor de uma mãe retirante, com uma dezena de filhos, na grandiosa e assustadora São Paulo da década de 1950. Superando dificuldades reais, apesar do analfabetismo e das necessidades básicas, ela coordena o amadurecimento de seus pequenos e pequenas com uma maestria impressionante. A sua falta de etiqueta é combinada com uma astúcia que em nada tem haver com uma educação escolar. Os filhos que sobreviveram (há referências sutis a mortalidade infantil que levou vários irmãos de Luiz Inácio) foram criados por uma mãe exigente, amorosa e benevolente. O filme dá especial atenção a um dos mais novos filhos de Dona Lindu. Mas parece mesmo mais um recorte narrativo do que uma sugestão que houvesse um tratamento diferenciado entre os dois (saber construir essa idéia é um grande mérito do roteiro). Lula, esse filho que o filme vai dar especial atenção, é caracterizado por ser mais inteligente, por ter uma capacidade comunicativa grande (afinal, todos querem que ele entre no sindicato por acharem que ele leva jeito para coisa... menos ele) mas por ser emocionalmente fraco, hesitante nas suas decisões e, pasmem, por ser excessivamente tolerante com algumas questões... o Luiz Inácio, personagem, demora para radicalizar-se e, ainda assim, o faz com ponderações. Que Luiz Inácio seria esse? Aquele que conhecemos entre 1979-1989 ou aquele que venceu as eleições de 2002? Talvez o Barreto esteja querendo dizer que ele sempre foi o mesmo – nem tão radical quanto pareceu à classe média durante a década de 1980, nem tão moderado quanto parece atualmente. Ou, talvez, numa licença poética, Barreto esteja falando mais de um Lula de cinqüenta e tantos anos (na verdade, ele já é sexagenário) do que o Lula de trinta e cinco anos. Quem sabe...

De qualquer forma, até os minutos finais do filme, a história de vida da família Silva é uma trajetória de sucesso, apesar de cicatrizes muito dolorosas (como a morte de entes muito queridos). Mas não há nada de macrosocial. O filme é mais belo por isso: retrata um sistema de valores próprios daquela comunidade. Quem ficaria feliz por ter sido empregado em uma fábrica e saber que trabalhará mais de doze horas por dia e terá os salários arrochados pela inflação galopante? O jovem Luis Inácio, sabendo da exclusão social que estava submetido pela deficiência física, vibra no dia da sua contratação e leva o público a sensibilizar-se com ele. É tão pouco. Mas, ao mesmo tempo, é tanto. Minutos finais do último rolo e Barreto resolve explorar a projeção do jovem presidente do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo como absolutamente casual. Fruto de coincidências políticas e acasos. Talvez, o sucesso seja mesmo isso – já mostra a seleção de Dias para o papel. De desconhecido metalúrgico no ABC, pessoa invisível no meio de milhões de trabalhadores, torna-se rapidamente a figura política de maior capacidade de mobilização social no país – ainda que não se dê conta disso. E...e... e o filme termina aqui. Pronto! E foi excelente essa escolha de Barreto. O filme não faz menções ao PT ou a sua carreira como político em espaços de negociação e barganha. O argumento do filme não é esse, e Fábio Barreto soube respeitá-lo muito bem: não caiu na tentação de querer falar de tudo. Se o projeto era falar da relação entre mãe e filho, o filme termina na morte de Dona Lindu. Ela simboliza o momento em que essa história deve ter fim[1]. A partir dali, outra história haverá. Um Luis Inácio público, e não mais intimo (como que o filme pretendeu). Se sentirem falta dessa parte, por favor, escrevam o roteiro e façam o projeto. Pode ser que o resultado seja excepcional. Mas acho incabíveis as críticas a respeito daquilo que o filme não disse. O que o filme não disse, realmente não fazia parte desse filme. Talvez, falam parte de outro filme. Há tantos projetos cinematográficos que querem falar de tantas coisas e acabam se perdendo. Não falando de nada com profundidade merecida. Esse projeto, com todas as críticas justas que devem ser feitas, não sofre desse mal. Aquele não é o Lula que conhecemos. Aquele é um Lula personagem. Irreal para falar algo sobre o real. Mas, não se esqueçam, irreal. Sobretudo, encaremos aquele Luiz Inácio feito por Fábio Barreto como um prólogo desse que, hoje, caminha para seus últimos meses na presidência da República.

Polêmica forte, na verdade, ocorre fora dos 24 quadros por segundo em que a obra se materializa como projeto cultural, e não como produto cientifico- vou insistir nesse ponto, apesar de ter certeza que serei vencido pela expectativa da maioria dos expectadores. Ponto que gerou debates, e ainda gera, é a possível utilização de dinheiro público para custear o filme. Se isso tivesse ocorrido, não seria nenhuma ilegalidade. A produção cinematográfica brasileira é custeada por incentivos estatais através de editais e leis de incentivo. Isso é uma realidade comum em quase todos os países do mundo. Excetuando-se Estados Unidos, França e Índia : únicas praças cinematográficas em que a produção de cinema é uma atividade rentável. Ou seja, somente nesses três países, a situação em que a soma de todas as receitas ganhas no cinema é maior que a soma de todas as despezas. Ainda assim, em outros momentos de sua história, esses países subsidiaram, e muito, a produção e distribuição de seus filmes[2]. Por isso, o apoio estatal é essencial em qualquer lugar que se faça cinema. Tentamos viver sem esse apoio no inicio da década de 1990 e o resultado foi muito ruim. Isso não significa que cinema não é algo para a iniciativa privada. É. Mas é preciso que haja uma combinação de interesses. É muito complicado convencer uma empresa a aplicar milhões de reais em um filme de retorno incerto. A iniciativa provada quer lucro, realizadores querem fazer filmes... e o Estado acaba participando como fiador. Pois bem, eu não conheço – deve haver, mas confesso minha ignorância – nenhum filme de longa-metragem nacional com distribuição comercial que não tenha utilizado de editais públicos para custear parte do orçamento. Os editais dificilmente conseguem cobrir 100%. Mas deixam “aquilo que sobra” dentro de uma margem em que a iniciativa privada sente-se segura em participar. Essa é uma prática generalizada. Para se ter uma idéia, mesmo os filmes da produtora GLOBO FILMES (que são retorno comercial certo) participam desses editais e, dessa forma, abatem parte considerável de seus custos. Quando soube que esse filme estava sendo feito, nem mesmo questionei se estaria ou não utilizando-se de dinheiro público. Conclui, naturalmente, que estava. E julguei que, independente dos méritos artísticos do filme, seria uma enorme polêmica fazê-lo. Não consegui julgar se certo ou errado. Afinal, como defensor de uma liberdade amoral (e não imoral), teria de apoiar uma iniciativa de fazer qualquer filme. Mesmo um filme sobre o Presidente da República que está no poder. Mas, confesso, a situação é altamente desconfortável.

Os editais públicos que contemplam esses projetos podem ser alvo de questionamento. Mas estão cada vez mais austeros, ainda que carecem de alguns aperfeiçoamentos. De qualquer forma, Fábio Barreto tem um nome forte na tradição do cinema no Brasil. Seria capaz de propor um projeto altamente exemplar e sem cometer falhas que poderiam desqualificá-lo (como erros no orçamento ou projeções irreais de realização). Também possui um excelente currículo, o que numa analise de experiência profissional – que conta pontos em muitos desses editais – poderia ajudá-lo. Enfim, um avaliador (mesmo aquele absolutamente criterioso e justo) provavelmente estaria diante de uma situação altamente desconfortável: uma vez que o projeto teria sido aprovado em todas as etapas eliminatórias, só restaria desqualificá-lo por conta da temática – situação em que nenhuma banca de seleção quer passar, ainda mais tendo de fazer com um filme de um diretor já indicado ao Oscar. Lembro de comentar com alguns amigos durante o último ano a provável cadeia de constrangimentos que esse projeto deve ter causado – sem razões técnicas para eliminá-lo, só restaria fazê-lo por questões políticas.

Mas isso nunca ocorreu. A situação que imaginei no parágrafo anterior é completamente fictícia, apesar de verossímil. A produção do filme, sabendo dessa polêmica, fez uma aposta arriscada. Decidiu fazer um longa-metragem sem apoio financeiro do Estado. Arrecadou 16 milhões de reais. Para se ter uma idéia, o maior faturamento do cinema nacional não chega a 10 milhões de reais. Antes do filme começar, somos apresentados a dezenas de marcas de empresa que decidiram patrocinar. Um risco financeiro dessa magnitude deve ser compartilhado, obviamente. Assim, fez-se o primeiro (pelo menos do meu conhecimento) longa-metragem brasileiro de distribuição comercial sem incentivos do Estado. Isso não exclui algumas críticas, por favor. Mas, justiça seja feita, os livra de uma série de questionamentos éticos que estão sendo submetidos (dos quais, alguns críticos, convenientemente, estão sendo surdos). Podemos, por exemplo, ponderar as razões que levaram tantas empresas a colocarem dinheiro nessa produção. Mas sem fazer demagogias absurdas – há sempre interesses políticos nas ações de patrocínio. Quando empresas nos Estados Unidos ou na França entram como patrocinadores de produções culturais, possuem interesses estratégicos em vincular suas marcas ao produto. Não é diferente no caso brasileiro. Existem razões para cada uma delas terem aceitado tal investimento. Quem não quer uma aproximação de imagem com um presidente que possui uma popularidade como a que possui Lula? As vezes, as aproximações tem interesses bem questionáveis – como a vinculação do empresário Eike Batista no projeto (justamente quando parece requerer o apoio do Palácio do Planalto para executar seus interesses junto a Vale). Essa vinculação de política e atividade cinematográfica é impossível de não ser feita, creio eu. Pode ser atenuada. Ou pode ser intensificada até níveis imorais. Mas acho difícil que não seja feita.

Assim, excluindo a possibilidade de desvios de verbas públicas e de tráfico de influência – o que apesar da possibilidade, não deve ser tratado como afirmação; a produção de Lula, o filho do Brasil esquivou-se de um dilema ético com muito malabarismo, habilidade e competência. As criticas, então, que caiam sobre a iniciativa privada.

Encerrando essa questão, o diretor Fábio Barreto foi questionado por um jornalista há algumas semanas atrás sobre o tema. Naturalmente, isso foi antes de ter sofrido o acidente de automóvel que o deixou em coma. O jornalista, na verdade, fez uma afirmação, não uma pergunta. Disse que se o presidente Lula tivesse ética só permitiria o lançamento desse filme em 2011. Incrível, não? Felizmente passamos da fase do regime militar em que o mandatário do executivo poderia interferir em assuntos de caráter não-público. O presidente não tem tal autoridade. Não decide por tais assuntos. Mesmo que o filme tivesse usado de incentivos públicos, o que nem ao menos ocorreu. Fábio Barreto disse-lhe isso. Diz que a decisão foi dele, e que não haveria maior cabimento perguntar ao presidente se haveria sua permissão. Mais uma vez, ainda bem que o sistema político nosso permite uma democracia que possa ser crítica ou favorável espontaneamente, sem pedir permissão. Na visão dele e de sua produtora, o lançamento do filme nesse momento, inicio de 2010 se aproveita da alta popularidade do Presidente para garantir bilheteria (numa analise bem amoral, seria o mesmo que lançar um filme para o público infanto-juvenil na época de férias... mas o mundo é mais complexo do que parece). Barreto defende que é ele que está se aproveitando da popularidade do Presidente para lançar o filme, e não o contrário. Questionável, mas faz sentido. Dada a instabilidade do mercado cinematográfico, é bem mais provável que seja Fábio Barreto que esteja se aproveitando... fazer um filme sobre um presidente popular e lançá-lo ainda na vigência de seu mandato é garantia de sucesso comercial. Para o presidente Lula, o filme pouco deve alterar sua popularidade – afinal, se os números de pesquisa forem realmente corretos, aqueles que não aprovam seu governo possuem uma opinião cristalizada e não irão mudar de idéia por conta do filme.

E sobre a possibilidade de que o filme seja usado como peça eleitoral? Se não diretamente, ao menos indiretamente? Existe essa possibilidade, é claro. E os agentes publicitários do Partido dos Trabalhadores devem buscar usar essa ferramenta, naturalmente. Não sei como, mas acho que veremos em 2010 esse filme ser usado de muitas formas. Mas também vimos nas eleições de 2002 e 2006 que a popularidade do presidente não é facilmente transferível. Se é ingênuo pensar que o filme não será tratado como peça publicitária (porque em época de eleição tudo vira material publicitário, até aquilo que nunca teve tal finalidade); é igualmente ingênua a posição daqueles que acham que o filme possui um potencial de mobilização de almas. Já superamos a década de 1930 em que Leni Riefesthein realizou o clássico nazista Triumfo da Vontade (ALE, 1934). Por favor, não quero fazer comparações ideológicas desses dois filmes. São diametralmente opostos. Estou apenas destacando que os críticos estão supervalorizando demais o projeto de Fábio Barreto. Atribuindo a ele poderes irreais. Poderes bem menores, por exemplo, do que fazer edições tendenciosas em debates políticos ou colocar em pauta de debates o passado intimo-afetivo dos candidatos. Isso sim, pelo que vimos, é o que influência decisivamente o público na hora do voto.

Não sei se estava nos plano do diretor Fábio Barreto. Não sei se ele imaginava essa polêmica toda. Ou se acreditava, ingenuamente, que a opção pelo não-financiamento do Estado poderia poupá-lo de tal. Não sei. Mas o que os críticos estão conseguindo (e pasmem, já havia laudas e laudas de criticas antes mesmo que o projeto estivesse pronto) é tornar um filme que era apenas “bom” ser tão debatido quanto uma obra “genial”. As pessoas estão indo ao cinema para ver esse filme polêmico – porque a polêmica, em uma síntese bem típica de Nelson Rodrigues, sempre radicaliza e atrai. O filme está mais comentado que muitos outros projetos que, esteticamente melhores, estão passando o verão ofuscados. E quem está produzindo isso são os próprios críticos, gerando uma áurea de atração e repulsa que, mesmo que gere opiniões contrárias, levará inevitavelmente todos ao cinema. E vai estimular no público opiniões polarizadas: perfeito/horrível... justamente para um filme que parece apostar num discurso ameno.

Por isso, preferi escrever antes sobre o filme, e depois sobre a polêmica. Afinal, pouco se disse do que acontece nos 24 quadros por segundo. E minha sugestão continua sendo que as pessoas assistam e tirem suas próprias conclusões – positivas ou negativas – mas que não sejam ancoradas naquilo que foi dito por pessoas que já tinham opiniões formadas sobre o filme antes mesmo de assistirem.

Retornando ao que interessa: o filme. Tenho uma forte crítica a fazer. O título do filme. Em um projeto que passa 120 minutos tentando não cair em soluções fáceis e tratamentos piegas para temas tão dramáticos, existe algum “escorrego” maior que esse título? Junto com a cena em que o menino Lula enfrenta o próprio pai, o título do filme parecem ser indícios santificantes do personagem. São cicatrizes em um trabalho tão bem feito em não torná-lo divino, e sim, humano. Mudaria o título. Pensei em várias outras possibilidades. Nenhuma me convenceu, mas na minha opinião, todas eram melhores do que Lula, o filho do Brasil. Mas ai, volto a fazer uma auto-crítica: esse comentário é fruto daquilo que eu queria como filme para o Lula. É preciso entender o que o filme pretende.

A prática cultural do Boi Bumbá na cidade de Belém (primeira parte)

Autor: José do Espírito Santos Dias Júnior (Historiador)

Uma das muitas expressões da cultura popular brasileira é o “boi bumba”, comédia satírica que se manifesta em várias partes do país, tanto no meio rural como urbano. Sua prática folclórica é revestida de representações peculiares na expressão e no enredo, que se moldam à realidade de cada região onde acontece. Em alguns Estados ela está relacionada ao ciclo natalino, de novembro ao dia de reis, em 6 de janeiro; na região norte e parte do nordeste vincula-se as festas juninas dedicadas aos santos do mês. Esta variação do calendário festivo também é marcada pela mudança nomenclatural, são várias as denominações espalhadas pelo Brasil, sendo as mais comuns as de “bumba meu boi” e “boi bumba”. No Estado do Pará é denominado de “boi bumba”, uma expressão provavelmente alusiva ao termo africano bumba, “instrumento de percussão, tambor, que pode derivar do quicongo mbumba, bater”. (SALLES, 2004: 193-200)
A cultura do boi bumbá em Belém está intimamente relacionada à história da cidade e parece ter origens remotas. Ernesto Cruz afirma que as manifestações de batuques e toadas em festas de São João surgiram com os primeiros colonos “que na noite de santo acenderam as primeiras fogueiras no vale amazônico” (CRUZ, 1944:124-126), Salles por sua vez, conta que desde 1850 já se fazia menção a um “turbulento Boi Caiado” (SALLES, 2004:195) em jornais da cidade. Este boi se manifestava pelos subúrbios juntamente com capoeiras, promovendo arruaças e desordens, sendo por isso constantemente contido pela polícia. Os espetáculos contavam com a presença predominante de pessoas do povo, que tinham nesta manifestação uma forma de extravasar suas aptidões lúdicas e sociais, uma “brincadeira” no dizer de seus participantes, que ganhava significados muito expressivos entre os meses de maio e agosto.
O simbolismo do bumbá não deixou de lograr algumas referências sutís e estilizadas da resistência negra ao processo opressor do branco colonizador. O “auto popular” foi revestido de pura ironia, uma vez que a dramatização e o desfecho da peça se caracterizavam pelo desafio empregado pelos personagens ligados a escravidão, ao branco colonizador, propiretário do boi e da fazenda. Menezes atribui este comportamento as reminiscências nobres presentes na linhagem dos cativos:
Esses personagens africanos seriam superiores, conscientes de sua linhagem, e que, não podendo impor-se pela força, ou violência, conclamando quantos os obedeciam, recorrem às armas dos farçantes? Por que não vermos nesta atitude a afirmativa de que eles eram “nobres”, para o seu povo, mesmo no terrivel exílio. (MENEZES, 1972:25)

Os significados da comédia guardam aspectos explícitos de uma cultura “cômica popular e pública” (BAKHTIN, 2008:1-50), na qual os elementos sociais representados revestem-se de imagens sarcásticas ridicularizadas pelos personagens em gestos e comportamentos parodiados da vida cotidiana. A ironia dá o tom da mensagem passada ao público como forma de zombaria e vingança do povo oprimido, que no caso específico do boi, estaria relacionado aos negros utilizados como cativos durante a história da escravidão no Brasil.
Em Belém a história do bumbá pode ser dividida em duas etapas. Uma primeira que compreende o final do século XIX e início do XX, identificada pela apresentação de um “boi de rua”, satírico que reproduzia a representação pastoril dos personagens envolvidos com o processo de colonização, uma fase marcada por apresentações ao ar livre e confrontos violentos entre seus participantes; e um segundo momento caracterizado pela mudança e consequente adaptação do “boi de rua” para o “boi de teatro” com exibições controladas e circunscritas aos “currais” e “terreiros”(1) , geralmente sediados nos subúrbios, principalmente a partir dos anos trinta.
Durante boa parte do século XIX até as primeiras décadas do XX a imagem do boi bumbá esteve ligada à vadiagem e a capoeiragem, traços de identificação do folguedo em Belém. Ele protagonizou brigas acirradas entre grupos rivais que percorriam as ruas da cidade em apresentações nem sempre tranquilas, pois quando havia os “encontros” entre dois “contrarios” (2) era inevitável a “indefectivel briga entre bairros para provar a liderança do grupo local, o favorito, o maior”(RIBEIRO, 1965:100). A divisão dos grupos em territórios acirrava as rivalidades principalmente porque os espaços de circulação para apresentação determinavam o sucesso dos bois na cidade, cada boi tinha o seu território demarcado e enfrentava fortes retaliações do boi rival caso invadisse o espaço alheio.

Quando os bumbás se encontravam em via pública, havia escaramuça feia em que muitos recebiam ferimentos graves. Só a presença da cavalaria é que dispersava os contendores. Os mais exaltados iam em cana e os ‘bois’, apreendidos, eram queimados no distrito policial. (A Provincia do Pará, 04/06/1967: 04)

Motivados pelos “encontros” violentos os grupos de bumba utilizaram-se da figura do capoeira como elemento de defesa. Ele satisfêz a necessidade que os bumbás tinham de ter em seus planteis homens bem preparados para participar das lutas corporais generalizadas, pois assumiam posições estratégicas no auto, ocupando inclusive o papel de “tripa” (3), o mais vulnerável no momento dos combates devido o mesmo ter que carregar a pesada carcaça do boi.
Mas não foi apenas a presença dos capoeiras que motivou as rivalidades entre os bumbas no início do século XX, as brigas apresentavam raízes remotas, uma vez que a motivação da luta e a preparação para os confrontos afloravam resquícios acestrais das guerras intertribais entre aldeias africanas, lembranças de suas origens étnicas trazidas para as novas terras com a escravidão e reconfiguradas no cenário urbano, principalmente após a abolição.
As constantes brigas e arruaças obrigaram a polícia a operar de forma repressiva proibindo a saída dos bumbás nas ruas. Por volta do ano de 1905 essa proibição foi posta em prática motivada por um conflito ocorrido no interior do boi bumbá “Canário”, resultando na morte de Golemada, famoso brincante de boi da cidade. Até 1915 os bumbás ficaram afastados das ruas, se mantendo, provavelmente, em apresentações escondidas pela periferia da cidade. Durante este período a intensa repressão policial rendeu na prisão de muitos brincantes e na incineração dos bois.
A repressão aos bumbas foi ambientada no contexto de desenvolvimento da economia da borracha na região, as preocupações da intendência em disciplinar as áreas centrais através das posturas municipais voltadas para obras de saneamento, asseio e embelezamento procuravam fazer da cidade um modelo de civilidade que não contemplava as práticas culturais de parte da população pobre, em sua maioria negra.
Quando voltaram à cena em 1915, os bumbas estavam reorganizados e em maior número, os encontros foram reestabelecidos sob nova configuração, surgiram os amos tiradores de toadas muito respeitados “pelo poder de improvisação nos encontros onde a arma de combate era a resposta pronta, a glosa ao mote do contrário” (RIBEIRO, 1965:100). Juntamente com os amos surgiu a figura do “dono do boi”, o organizador, divulgador e provedor da peça, o lider da brincadeira que oferecia sua residência como “curral”, lugar por excelência das apresentações, um verdadeiro teatro popular que atraía os inflamados torcedores. Essas mudanças ocorridas como efeito da política repressiva aos bumbás, ganharam outras motivações nas décadas seguintes.

Notas.
1. Os currais e terreiros eram espaços amplos dedicados às exibições dos bumbás, geralmente localizados em quintais.
2. São termos usados pelos brincantes do boi bumbá, nos quais os “encontros” designavam o momento de encontro e combate entre os bois rivais, e “contrario” o termo utilizado para identificar o boi rival.
3. Termo utilizado para denominar o homem que carrega o boi bumbá.

A prática cultural do Boi Bumbá na cidade de Belém (segunda parte)

Autor: José do Espírito Santo Dias Junior (Historiador)

(continuação)

Com o florescer da década de cinquenta o folguedo atravessou novas transformações. As exibições começaram a mostrar um carater teatral introduzindo novos personagens, novo figurino e a utilização de cenários específicos, os terreiros, currais e teatros. É possível que o caráter repressivo da polícia, somado à condição de ser o boi um “auto popular” manifesto principalmente pelas “classes perigosas” (CHALHOUB, 1996:20-29), tenha contribuido para uma mudança na estética do “brinquedo”. Seus organizadores preocupados em ofuscar os aspectos negativos ligados à capoeiragem e às brigas constantes do início do século, começaram a passar outra imagem do folguedo. A brincadeira foi se disciplinando e passou a adotar um novo estilo de comportamento coletivo, agora identificado com as manifestações folclóricas.
As mudanças deste período têm relação com a atenção que os estudiosos do folclore passaram a dar às expressões culturais manifestas em todas as partes do Brasil. Assim, os folguedos paraenses passaram a ser objeto de estudo de folcloristas interessados em fazer pesquisas de campo, coleta de dados, catalogar os estilos, fazer levantamentos etnográficos e buscar o histórico das manifestações. Os estudos concentrados na Comissão de Folclore do Pará demonstram bem a preocupação dos intelectuais nela presentes que já admitiam a necessidade de um envolvimento maior da sociedade para se preservar os folguedos juninos em nossa cidade, uma vez que estavam “caindo no desuso e extinção, devido as interferências modernistas” (MENEZES, 1972:29) e ao legado violento que a brincadeira do boi bumba deixara em décadas anteriores.
Com o I Congresso Brasileiro de Folclore ocorrido no Rio de Janeiro em 1951 e com as discussões feitas a respeito das práticas culturais realizadas em todo o país, a partir do final da década de quarenta, um outro olhar foi dado aos folguedos juninos, as resoluções do encontro previam um maior ajustamento das tradições populares espalhadas pelo Brasil às políticas públicas de preservação e incentivo da cultura popular.
Os folcloristas interferiam nas manifestações dando sugestões de apresentação, noções de teatro e do prório conceito de folclore. Os antigos folguedos juninos passaram a ser chamados de “tradições folclóricas”, tornando-se a partir deste momento, manifestações emblemáticas da cultura popular e da identidade regional, saindo do domínio exclusivo das classes populares, passando a fazer parte também da tutela de estudiosos e eruditos.
É neste contexto que se verifica a aproximação do poder público às manifestações folclóricas em Belém através de políticas de subvenção e da promoção de eventos oficiais que congregaram os diversos folguedos existentes na cidade. Foram criados então os “Festivais” e “Concursos” oficiais de folguedos juninos organizados pelo departamento de Cultura e Turismo do Município de Belém (Detur), muito disputados entre as décadas de 1960 e 1980. A intervenção do poder público alterou a forma como os produtores culturais organizavam suas “brincadeiras”, pois a partir do momento em que os orgãos oficiais passaram a interferir diretamente, distribuindo verbas, definindo o calendário das apresentações e condicionando as exibições aos eventos oficiais, os folguedos ficaram de certa forma atrelados às políticas culturais desenvolvidas pelo Estado, tornando-se manifestações populares dependentes das políticas oficiais. Era comum nos jornais da cidade reclamações dos produtores culturais a respeito das parcas verbas dedicadas à cultura popular, o depoimento de Mestre Setenta (4) elucida bem está dependência:

A prefeitura engana a gente com uma bagatela. Este ano, dos gastos que prestei (...) foram 28 mil cruzeiros, isto sem contar as quinquilharias que a gente vai comprando sem contar, linha, armarinhos, fitas. Todo este gasto eu faço com a ajuda do povo, e com salário de meu próprio bolso. Este ano, para todo este gasto, a Prefeitura deu 18 mil cruzeiros. Pelo menos agora a Prefeitura até que dá uma certa ajuda, mas teve prefeito que nem olhava para o folclore - e mesmo assim o Tira Fama nunca deixou de sair. (A PROVINCIA DO PARÁ, 21/06/1981: 01).

Este condicionamento institucional apesar de interferir na preparação dos folguedos e criar certa dependência não encerrou o carater espontâneo e autônomo dos brincantes dos bumbas que continuaram fazendo suas promoções e cotizações para “botar o boi na rua”, como nos conta Mestre Setenta:

Nos primeiros anos de saída do bumba, seus componentes estavam mais motivados. Compravam até suas próprias vestimentas. Nos dois últimos anos, as coisas mudaram completamente por inúmeras razões. E agora ninguém sai num boi bumba se o seu proprietário não der toda a indumentária. E vestir 49 e 70 ou mais pessoas em nossos dias não é brincadeira, não. Não fosse a ajuda de particulares e de algumas entidades há muito que a figura do boi bumba já teria desaparecido em Belém. (O JORNAL, 15/07/1973: 03)

As condições colocadas para a realização do espetáculo do bumba, interferiram decisivamente na maneira com que seus organizadores moldaram o folguedo a partir de meados do século, alterando pequenos entrechos da peça, substituindo, por exemplo, a “matança do boi” pela “ferração”, que apesar de possibilitar uma interpretação diferenciada do folguedo, ainda procurou manter traços das expressões tradicionais em representações semelhantes às exibições antigas.
As diversas leituras do bumba produziram discursos, algumas vezes auto sugestivos de seus produtores culturais que clamavam, por exemplo, a originalidade do auto popular, atribuida aos próprios “botadores” mais antigos. Estes acreditavam que seus bois eram “folguedos tradicionais” e representavam os “antigos bois de rua de Belém”.
Mestre Setenta costumava dizer que “os bois de hoje são democrátas” (O LIBERAL,29/06/85:18) explicando que permitiam uma série de deturpações ao folguedo. As razões para sua declaração estariam nas inovações permitidas pelos produtores culturais mais jovens que acrescentavam novos elementos a estética do folguedo, alterando assim sua expressão original. O termo “democratas” estaria provavelmente relacionado a uma permissividade transgressora da tradição, que alteraria os pressupostos e o propósito do folclore regional. Com essas declarações Mestre Setenta demonstrava de forma rígida e exasperada a maneira como via as trasnformações nos folguedos juninos estendendo sua crítica a outras expressões folclóricas, modificadas pelas inovações. É o que nos mostra seu depoimento:

Dizem por ai que tudo é folclore e o que eu canso de dizer a todo mundo é que carnaval não é folclore, é uma consequência. A quadrilha também não é, é consequência. A única coisa da Quadra Junina que é folclore pra mim, é boi e pássaro, mas que já está ficando muito modificado. Quando cheguei aqui, (...) tinha muitos bois e não se via o que está se vendo agora, parecendo carnaval. Outra coisa que o pássaro carrega é o balé. Precisa explicar muito bem, que balé é cultura, é teatro, e isso nunca houve em pássaro, de maneira nenhuma. Eu já vi umas meninas sub-nuas, tipo pessoal do Chacrinha... então querem anarquizar! (SEMEC, 1986:4)

Suas declarações sugerem que havia uma distinção entre algumas expressão artistica da quadra junina que, na sua opinião, eram consideradas folclóricas, por identificarem-se com aspectos tradicionais; e outras identificadas com o conceito de cultura, por permitirem certas variações. As classificações dadas por Mestre Setenta para os tipos de manifestações demonstram que ele atribuia sentidos aos conceitos de “folclore” e “cultura”, que na sua cabeça apresentavam significados distitintos. Talvez esta compreensão tenha sido reflexo dos contatos entre Setenta e estudiosos do folclore em Belém.

Notas:

4. Elias Ribeiro da Silva (1915-1997): Produtor cultural, dono e amo do boi “Tira Fama”.

A prática cultural do Boi Bumbá na cidade de Belém (parte final)

Autor: José do Espírito Santo Dias Junior (Historiador)

Foi natural em meados do século XX os debates acerca do estatuto dos estudos do folclore e da cultura popular como campos de investigação similares, apesar das divergências apontadas por uma ou outra corrente que duvidavam de determinados aspectos normativos e de sistematização. Para alguns o folclore estaria relacionado aos saberes populares enquanto a cultura popular estaria ligada aos conceitos acadêmicos. Embora essas conceituações possam ter variações e definições mais complexas destacadas nas pesquisas de antropólogos, literatos, linguistas, historiadores, etc., elas se plasmaram a revelia dos canones eruditos quando ganharam sentidos próprios na compreensão dos produtores culturais dos folguedos juninos em Belém. Resultado da “circularidade cultural” (GINZBURG, 2006: 11-30) manifesta nas expressões folclóricas.
Mestre Fabico (5) por sua vez, referenda que seu boi “não tem pavulagem” por ser “um boi de rua” (BALERA, 29/09/2008) que pratica a cultura popular sem o cerimonial e a estrutura que cerca os movimentos recentes de bumba em Belém. Na sua avaliação o seu boi “Flor de Todo Ano”, é um boi “popular” que se manifesta sem restrições de público ou lugar, podemos perceber este discurso presente em uma de suas toadas:

Vim trazer Flor Todo Ano, para o povo apreciar,
ele é um boi de rua, dança em qualquer lugar,
ele é um boi de bamba é chamado para o interior,
brinca em qualquer cidade porque tem muito valor,
não é boi de Pindaré, nem é boi do Axixá,
ele não tem Pavulagem, nem é boi de Cametá
não é boi do Maranhão e nem é boi do Mangangá
ele é um boi paraense que nasceu lá no Guamá.(BALERA,17/10/2008)

Ser diferente era um dos motes inspiradores das toadas cantadas pelos amos de boi em Belém, que num discurso consensual elegiam-se como os “guardiões” da cultura originária do boi bumbá. A toada acima demonstra certa provocação ao grupo “Arraial do Pavulagem”, que segundo Mestre Fabico “é um boi bacana, mas não é igual aos bois tradicionais” (BALERA,29/09/2008). A tradicionalidade estaria identificada por determinadas caracteristicas singulares na estética e na performace de seu boi, que ainda fazia o esforço de manter costumes do passado ao sair nas ruas em batucada com seu grupo de barriqueiros, apresentando a comédia dramatizada com personagens antigos, mantendo alguns rituais resistentes às inovações culturais sofridas pelo folguedo nas ultimas décadas.
Nos ultimos trinta anos a comédia do boi foi ganhando outras interpretações que dinamizaram a cultura popular em Belém. Foi na década de oitenta que novas formas de apresentação da peça misturaram-se às versões antigas. As variações sofridas foram geradoras de significativas mudanças nos sentidos da manifestação folclórica, pois a territorialidade do boi, tradicionalmente identificada com as periferias, estendeu-se a outros espaços de atuação no centro da cidade, teatros e praças passaram a ser utilizados pelos grupos folclóricos, onde um público diversificado começou a apreciar a brincadeira do bumba, que deixou de ser domínio exclusivo das classes populares residentes nos suburbios passando a atrair outros segmentos sociais. Um exemplo está nas expressões mais recentes que representam o boi em estilos e danças misturados a outras expressões folclóricas, promovendo uma síntese de diversas “brincadeiras” da região. É o caso do boi “Arraial do Pavulagem”, boi que ganhou amplitude na década de 1990, fazendo apresentações semanais, durante a quadra junina na Praça da República atraindo adeptos de outros segmentos sociais que costumeiramente não brincavam nem apreciavam o folguedo do boi.
Os vários significados estéticos geraram modelos bem distintos de representação do folguedo em Belém nos ultimos anos, sendo possível encontrar-se expressões tradicionais e, ao mesmo tempo, formas mistas e estilizadas. As primeiras organizadas por antigos mestres, remanescentes dos bumbas das primeiras décadas do século XX, que resistem às trasnformações do folguedo, realizando exibições suburbanas nas ruas e festas da periferia durante a quadra junina; e as segundas manifestas em eventos públicos de maior amplitude realizados em praças e teatros, contando com a presença de um público bastante diversificado e eclético.
Apesar de certa clivagem existente nos bumbás o locus de circulação dos diferentes estilos de boi se espraia por espaços comuns. Os eventos oficiais organizados pela Prefeitura Municipal e pelo Governo do Estado constituem-se em lugares de convergência entre as várias tradições folclóricas, pois grande parte dos folguedos juninos do Pará apresenta-se nos concursos e festas oficiais, proporcionando a reunião dos “folguedos tradicionais” com as expressões “estilizadas”, possibilitando a troca de experiências e de saberes desta antiga expressão popular.
É ancorada nessas variações de estilos e representações que a cultura do boi bumbá vem se mantendo em Belém, demonstrando o carater mutável do folguedo ao longo do século XX, mesmo quando reclamado por produtores culturais tradicionalistas que nas suas apreciações romanticas exaltavam o mito da “originalidade” e da imutabilidade folclórica. A cultura popular na sua ascepção dinâmica pode adaptar-se de acordo com as circunstâncias sociais e o contexto histórico, mantendo costumes e tradições simbólicas ancestrais, passadas de geração a geração, ao mesmo tempo em que se adequa as atualizações proporcionadas pela modernidade, num processo dialético de múltiplas facetas que reforçam a amplitude das experiências compartilhadas pelos indivíduos em determinado espaço e tempo.
Para concluir é importante considerar que há um número significativo de depoimentos e matérias de jornais disponiveis para pesquisas na área de folclore, música, teatro e cultura popular em geral, no acervo Vicente Salles, no Museu da Universidade Federal do Pará em Belém; na Biblioteca Pública do Estado do Pará; no Centro Cultural Mestre Setenta; além das entrevistas disponíveis no Museu da Arte e do Som do Centro Cultural Tancredo Neves em Belém. Todos de bom conteúdo para a construção e análises de pesquisas na área da História Cultural.

Notas:
5. João Fabiano Balera: Produtor cultural, amo e dono de boi bumba “Flor de Todo Ano”.


Bibliografia
BAKHITIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Brasilia, Hucitec/UNB, 2008.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore. São Paulo: Brasiliense, 2007
CRUZ, Ernesto. “Costumes e tradições – Festas de São João”. In: Belém: aspectos geo-sociais do Município. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944.
CHALHOUB, Sidney, Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo – Companhia das Letras, 2006.
MENEZES, Bruno. Boi Bumba: Auto popular. Belém. Editora H. Barra, 1972.
RIBEIRO, José Sampaio de Campos. Gostosa Belém de Outrora. Belém, Editora Universitária, 1965
SALLES, Vicente. O Negro na formação da sociedade paraense. Belém: Paka-Tatu, 2004.
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO E CULTURA. Cadernos de cultura: O Tira Fama, Elias Ribeiro da Silva (Seu Setenta). Belém, 1986.

O hábito dos incêndios suburbanos.

O hábito dos incêndios suburbanos.
Autor: Tony Leão

Costuma-se dizer que a cultura local é extremamente rica. É de fato o é. A cultura paraense ou amazônica, como costumamos dizer, é extremamente rica e diversa. Não precisamos de grande esforço pra citar dezenas de manifestações de nossa região conhecidas e reconhecidas como elemento de nossa riqueza cultural. Basta falarmos no carimbó, por exemplo, largamente festejado por amplos setores da sociedade paraense e que agora busca seu reconhecimento com patrimônio imaterial do Brasil.
Poderíamos falar também, ainda no campo da música e do folclore popular, do Siriá, do Lundu regional, da Marujada de Bragança, do Sairé, do Boi-Bumbá em suas diversas formas, do próprio carnaval caracteristicamente nosso, das quadrilhas juninas, dos pássaros juninos, do Mar-Abaixo, da Mina Paraense, das ladainhas interioranas, etc., etc.
Poderíamos falar ainda de nossa cultura alimentar; ou da presença de grande diversidade de povos indígenas com suas respectivas línguas e costumes; dos costumes dos ribeirinhos; da caça; da pesca; da relação com a natureza transformada em lendário riquíssimo e popular; da influência nordestina na literatura e no falar popular em várias cidades da região; de incorporações ais recentes como o reggae trazido e apreciado pelos migrantes maranhenses moradores da periferia de Belém e de outras cidades, etc.
Como disse certe vez um político local: a cultura paraense ou amazônica tem um diferencial de ter todas as manifestações que existem nas outras regiões do país (o forró, o samba, o boi, etc.), mas somando-se a isso a presença de manifestações tipicamente regionais.
Mas hoje não pretendo falar sobre elementos da cultura local já bastante conhecidos e festejados. Gostaria de falar de outros elementos não tão laureados assim. Tomemos como exemplo alguns elementos da cultura urbana de nossa capital, Belém. Afinal como sabemos cultura popular não se restringe à produção rural, mas também a tudo que é produzido pelo “popular”. E já que existe esse “popular” nas cidades grandes também, logicamente, a cultura popular está lá presente.
Um dos elementos da cultura popular urbana que tem mais me chamado a atenção nos últimos dias, decorrente de minha morada em um bairro da periferia de Belém, é o habito da “queimada de casas”.
Este hábito caracteristicamente periférico é muito apreciado em bairros como o Jurunas, a Cremação, a Condor, o Guamá, a Terra Firme, o Telegrafo, a Sacramenta, e demais bairros marginais das proximidades da Av. Augusto Montenegro, chegando ao outros da região metropolitana de Belém, elem de outras cidades do estado e da região.
A queimada de casas consiste no seguinte ritual. Permitam-me ensaiar uma breve etnografia do rito, tal como gostam muito de fazer os antropólogos e demais cientistas sociais, quando estão próximo ao exótico:
a) Primeiro existe condições muito precárias de existência e moradia. Casa de madeira de segunda ou de terceira, feitas com muito sacrifício pelos moradores. Geralmente são casas pequenas e pouco ventiladas. Muitas delas são extremamente quentes devido estarem muito coladas umas as outras. Isso decorre do fato de que estas casas são feitas em terrenos muito pequenos. Às vezes um mesmo terreno de 15, 20 ou 30 metros é ocupado por várias famílias. A família principal de pai, mãe e filhos fica na frente e os numerosos filhos e filhas mais velhos com suas respectivas esposas ou esposos e também numerosos filhos, ficam em casas que ocupam o que fora noutr’ora um quintal. Isso quando existe quintal, pois quando se trata de ocupações mais recentes – “invasões” como são conhecidas pela imprensa! – os terrenos são sempre menores ainda e quase não sobra espaço algum a não ser o da própria casa. Outra característica é o terreno alagado ou alagadiço destas habitações. São geralmente as áreas menos nobres da cidade que foram ocupadas, e, tendo em vista as características geográficas de Belém com seus igapós, são áreas que enchem no inverno e ficam empoeiradas no verão.
b) Segundo, existe pobreza. O que acarreta, entre as milhares de coisas possíveis, instalações elétricas mal feitas, pais que trabalham o dia todo e deixam crianças sozinhas em casa, ou mesmo famílias apenas com a mãe e vários filhos – isto é, “mães solteiras” que além de criarem os filhos sozinha têm que trabalhar fora e deixá-los em casa ou na rua mesmo. Considere-se que o “nativo” destas regiões da cidade costumam ter mais filhos do que nos setores médios e esclarecidos das urbes.
c) Em terceiro lugar temos que considerar a existência de um clima muito quente em nossa região. E o longo período de sol a pico, devido à proximidade com a linha do equador. Nestas condições o “nativo” fica entre a cruz e a espada. Na parte mais chuvosa do ano tem que viver com os alagamentos, da sua casa ou na melhor das hipóteses pelo menos o alagamento da sua rua, e no verão como já dissemos, tem que viver com o calor e com a poeira das ruas de terra.
Ao caro leitor, devemos informar que estamos fazendo uso aqui de um “tipo ideal”, tal como gostam de fazer os cientistas sociais em suas análises dos fenômenos sociais. Obviamente que há exceções a este quadro que retratamos acima, mas de uma maneira geral ele pinta com cores cinza a realidade da maior parte dos moradores de periferia de Belém e de outras cidades da região.
d) Somando-se este conjunto de características da cultura cabocla periférica urbana – digo cultura cabocla, pois a maior parte dos nativos destas áreas são mestiços de índios, negros e brancos pobres das mais diversas origens, ou como diria Caetano Veloso: são todos quase pretos, quase pobres, e, no nosso caso, quase índios! Voltaremos a este tema em outro momento. Mas como dizia, somando-se este conjunto de características culturais, aos quais obviamente todos nós paraense e amazônidas devemos nos orgulhar, temos finalmente o hábito da queimada de casas – hábito que obviamente já faz parte de nossa cultura popular urbana e por isso mesmo dever se amplamente divulgada.
Esta ocorre da seguinte maneira. Por um motivo qualquer ocorre um estopim. Pode ser uma fiação elétrica mal feita que estourasse, pode ser um ventilador empoeirado super aquecido, um ferro de passar roupa esquecido devido ao cansaço do dia duro de trabalho, uma criança brincando com fogo – enquanto a mãe trabalhava ou algo do tipo. Seja como for ocorre o estopim e a casa - na maioria das vezes de madeira, dado um costume local e/ou a falta de grana pra comprar tijolos – começa a pegar fogo.
Ai começa a correria. As mulheres gritam chorando. Os populares tentam salvar a geladeira, a televisão – obviamente ninguém quer perder a novela das 8! – se salva aquele dinheirinho guardado da venda de cosméticos, o material de manicure e pedicuro, as roupas do dia-a-dia. Claro, se salva também as crianças e as pessoas que estejam em casa! Infelizmente às vezes o ritual chega a acontecimentos trágicos, quando alguma criança ou adulto não consegue sair a tempo e é consumido pelo fogo junto com a casa.
O fogo obviamente consome a tudo rapidamente. Considere-se anda que faz parte desta cultura o fato de que o corpo de bombeiros chega com dificuldade às ruas, geralmente estreitas, e muitas vezes com bastante atraso. E algumas vezes ainda sem água suficiente nos seus carros-pipa para apagar o incêndio. As casas de madeira em período de pouca chuva e muito calor viram rapidamente uma grande fogueira que ilumina o bairro todo. Os populares chegam pra assistir o espetáculo. Alguns participam tentando salvar alguma coisa. Outros participam tentado “levar” alguma coisa no meio da confusão. Outros ficam penas gritando, chorando, rindo ou lamentando. Muitos lembram de outras queimadas e falam que uma determinada foi muito maior que a outra e coisas do tipo. Os mais caridosos consolam os moradores da casa e já começam a se mobilizar com vizinhos e patrões para conseguir comprar madeira ou tijolos. Tentar arrumar comida e roupas usadas. No outro dia já começam a chegar a ajuda de vários lugares.
A imprensa também aparece pra retratar a cena. Falam que as famílias ficaram sem nada. Muitas vezes apenas com a roupa do corpo. Dizem ainda que não seja possível precisar a causa do incêndio e que o corpo de bombeiros só poderá dar um laudo definitivo depois de 30 dias. A repórter comovida apela para a caridade dos outros e dá um número de um telefone para que as pessoas possam ajudar. Depois de algum tempo não se fala no assunto. Até que outro bairro apresente uma nova queima de casas – coisa que como já disse é muito mais rico nos subúrbios da cidade. Por vezes o prefeito promete ajuda – às vezes ajuda mesmo, às vezes não!
Se considerarmos que a cultura popular é aquilo que é produzido pelo “povo” ou pelo menos junto ao “povo”, é de estranhar que os folcloristas, os produtores culturais, os secretários de turismo e de cultura, os antropólogos e historiadores da cultura, e mesmo o IPHAM ou outros órgãos parecidos ainda não tenham se dedicado ao tombamento desta prática cultural. Poderíamos lutar para que as queimas de casas fossem, quem sabe, elevadas à condição de patrimônio imaterial da cultura paraense, e até mesmo da cultura brasileira – já que isso ocorre também, ao que parece, em outros lugares do Brasil, é verdade que aqui com suas características próprias. Digo patrimônio imaterial, pois é de se considerar que de material mesmo sobra muito pouco depois de um incêndio. A não ser que queiramos fazer um museu de cinzas e carvões e claro!
Talvez a exemplo do que ocorre em outros estados do Brasil, como o Rio e Janeiro, pudéssemos até organizar safares urbanos. Lá na favela da rocinha é comum vermos jipes e carros que lembram aqueles veículos que trafegam pela savana africana, repletos de gringos vestidos de bermudas de arqueólogos, jaquetas de fotógrafos e munidos de modernas maquinas fotográficas registrando tudo o que ocorre no morro. Alguns, por mais perigosos que possa parecer até fazem contato como os nativos verificam seus hábitos alimentares, sua música exótica e outras coisas. Temos um potencial aqui que ainda não colocamos em ação. Safares nas palafitas incendiadas de Belém, até mesmo para mostrar que não temos aqui só floresta.
Seja como for é estranho ainda que mesmo a simples etnografia disto não tenha sido realizada por aqueles que vivem a falar bem da cultura popular da região, vangloriando-se da cultura ribeirinha, do carimbó, do açaí, do tacacá, da maniçoba, do Círio de Nazaré, etc. Nem mesmo os músicos que cantam aos quatro cantos do mundo a cultura regional ainda não trataram disso. Bom nunca é bom lembrar que é importante sempre falar bem de nossa cultura popular, mas me estranha que um ritual da cultura popular tão rico e comum na periferia de nossas cidades não tenha sido sequer retratado.
Faço eu então o papel de desbravador das nossas coisas, mas lembrando o que dizia Walter Benjamin, que toda cultura sempre representa um documento da barbárie...